Alguém desenhou uma suástica na paisagem idílica do lago aqui perto de casa. Não foi ontem nem hoje, mas no verão passado. Muita gente que mora aqui perto, ao redor do lago Magelungen1, tem barcos de madeira ancorados nas margens. Quando o inverno chega, os barcos ficam congelados na água. É uma imagem poética, fantasmagórica. O lago é enorme, se estende por quilômetros, e suas águas são marcadas por boias de sinalização que indicam as áreas de banho e trajeto de navegação no verão. A suástica é uma pichação em uma dessas boias que ficam flutuando no meio do lago. Ela está longe o suficiente para não ser alcançada por um braço de alguém na margem, mas perto o bastante para que a gente consiga ver a pichação com clareza quando a corrente de água gira a boia contra o sol. No início, a tinta era rosa neon. A boia é laranja. O contraste de rosa sobre laranja faz com que a pichação seja perceptível apenas para quem está prestando atenção. Agora está se apagando, no seu lugar ficou um branco leitoso. A natureza e o tempo estão apagando o símbolo. Mas eu não. Eu vou lembrar da tinta rosa para sempre.
Caminhar às margens do Magelungen é um dos meus prazeres pessoais. Ele marca uma espécie de ponto de refúgio entre a civilização e o selvagem. No verão, eu mergulho nele para me refrescar. No inverno, caminho sobre ele e ensaio trazer meus ice skates para patinar com os vizinhos. No inverno sueco, todo mundo é Jesus Cristo e caminha sobre a água. Andar na volta do lago, ou por cima dele, mergulhar no escuro dos seus 13 metros de profundidade e fazer piqueniques às suas margens são parte da minha vida de imigrante na Suécia. É um dos poucos pontos de conexão e identificação que tenho com as pessoas daqui, que também amam o contato rotineiro com a natureza. A suástica chega para mim como um lembrete: nem aqui você estará livre das atrocidades do mundo e da barbárie humana. É um aviso.
Muitas vezes pensei em pedir um barco emprestado para um vizinho, para ir até a boia da pichação e apagar o símbolo. Como? Não sei. Talvez pichasse eu mesma alguma outra coisa por cima. Uma flor. Um círculo pintado de preto. Mas tenho medo de ser pega pelo circuito municipal de câmeras (pichação é crime etc). A boia está perto demais da ponte principal do lago, por onde passam veículos pesados e, portanto, com certeza tem câmeras. Isso me deixa duplamente irada, pois a pessoa que fez a pichação passou ilesa pelo registro. E só poderia ter feito pela água, de um dos inúmeros barquinhos atracados, ou de um caiaque. Mais de um ano se passou e eu não fiz nada. Mas permaneci indo ao lago quase todos os dias, como sempre. E todas as vezes, com raiva, olhei para a boia maldita. Sem saber o que fazer com isso.
Não é assim que eu olho para o ódio dos outros contra mim? Com raiva, sem saber o que fazer. Não é assim que olho para o nazismo nos museus? Com raiva, sem saber o que fazer. Não é assim que olho para as guerras acontecendo hoje? Com raiva, sem saber o que fazer.
A suástica está quase invisível, perde-se no branco turvo da tinta apagando-se. Eu estou cursando uma disciplina sobre quadrinhos digitais na universidade. O professor pediu um dia que a gente saísse para fora de casa para caminhar e escrevesse um texto sobre a caminhada. Depois, pediu que a gente selecionasse algumas sentenças isoladas do texto e, com elas, criasse uma história em quadrinhos. Foi quando consegui, pela primeira vez, fazer algo com a boia da suástica. Escrevi e desenhei sobre minhas caminhadas pacificadoras ao redor do lago, sobre como a natureza aqui é bela e serena, sobre como é importante para a vida de um imigrante encontrar momentos de paz e segurança, e sobre como aquela pichação interrompeu tudo isso.
Essa pichação vai sumir. Mas o quadrinho e esse texto aqui, não. Na minha mesa de trabalho tem um post-it onde se lê uma frase que peguei sabe-se lá de onde “History is about storytelling”. A História é sobre contar histórias.
Que a gente continue escrevendo a nossa parte nisso tudo.
Post scriptum
Quase não saiu newsletter hoje. Eu tinha outro texto programado, outra pauta para publicar, mas senti um nó crescente tomando conta da garganta, algo parece não estar ok.
Eu sei do que se trata. É o mundo lá fora se arrebentando em todos os lugares. Outubro não está sendo um mês fácil para os habitantes do planeta Terra. Me pergunto se houve algum mês que foi fácil. Mas certamente este outubro está excepcional.
Satélite de recomendações
As recomendações de hoje são panoramas sobre os conflitos do qual não me arrisco a comentar, pois o bom-senso me diz que este não é o meu lugar. Mas me solidarizo com todo mundo envolvido e afetado diretamente pela situação. Deixo aqui a palavra de duas pessoas com quem me importo.
O Renato postou alguns vídeos esclarecendo a situação em Israel. Inclusive esse aqui.
A Ariela, da
, publicou uma reflexão ontem.
Por hoje é só.
Um abraço apertado para todo mundo.
Vanessa Guedes.
Na Wikipédia tem um artigo em inglês sobre o Magelungen.
bom dia. Meus olhos chispam de ódio com tudo que é relacionado ao nazismo. Eu sinceramente pegaria um bote e faria alguma coisa. As vezes eu sinto muito rancor de tudo e como sei que o ódio não conduz a nada e nos adoece, peço a Deus que tire o rancor de mim. Apesar de me considerar ateu. Mas não tenho a quem recorrer pra me livrar desse sentimento que eu sei ser nefasto. Eu consigo compreender muita coisa mas acho que Freud disse que tudo compreender não é tudo perdoar. Às vezes é difícil ressiginificar o ódio e plantar uma flor. Mas eu acho que você fez isso. Obrigado por compartilhar.
tem que fazer a suastica virar cata-vento ! aaaa