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Olá, leitores. Essa era a minha semana de recesso, mas peguei uma gripe fortíssima (não é covid, mas está debilitante) que me botou na cama ontem e, do alto da febre, resolvi responder uma carta aberta que a amiga Ariela K. me enviou na sua newsletter, A Diletante. Confiram a news da Ariela, não deixem de ler a carta original e assinar para acompanhar o papo caso ela me mande uma resposta também. Ela escreve sobre coisas peculiares (pelo menos para mim), como a bíblia e alguns autores de que gosto sob um ponto de vista único.
Preciso avisar que o assunto da carta é um do qual não falo muito publicamente, mas que mexe com meus sentimentos. Por isso, talvez, seja um texto levemente inflamado, mas que parte de um lugar de afeto e respeito. Espero que chegue em vocês com o coração quentinho.
Então, a carta abaixo é uma resposta ao texto Responder a todos #1.
Ariela querida,
É verdade. Quando eu falo de veganismo ou direitos dos animais nas redes sociais, perco seguidores. Ainda não perdi leitores aqui na newsletter porque nunca toquei no assunto explicitamente. Hoje talvez seja a prova de fogo. Muitas vezes sinto como se a mera menção ao meu veganismo fosse uma tocha acendendo-se de repente. E iluminando um assunto antes coberto pela escuridão da rotina e a banalidade da vida. Há treze anos as reações eram mais violentas, mas hoje em dia confesso que encontro cada vez menos hostilidade. Sabe o que mudou de lá para cá? Hoje existem 10% de vegetarianos e veganos nos Estados Unidos. 14% no Brasil. 28% no México. 30% na Alemanha. As fontes variam no caso da Índia, mas com certeza é algo entre 30 e 40%. Se filtrarmos os dados por faixa etária da população mundial, veremos que esses números são maiores ainda entre os mais jovens. Não comer animais é uma ideia que se espalha com entusiasmo como uma grande fogueira iluminando um celeiro escuro.
É interessante pensar em fogo quando falamos de animais. Sem o fogo a maioria das pessoas não comeria carne. Eu sei, sushi não precisa de fogo. Nem tartare, feito de carne vermelha crua. Tampouco alguns tipos de salame e outros embutidos. Mas a maior parte da carne consumida no mundo é cozida, assada ou frita antes de chegar aos pratos. Isso me lembra de uma velha história. Nela, o poeta grego Hesíodo descreve no século VIII a.C., em sua Teogonia, o episódio em que o titã Prometeu repartiu um boi ao meio, dando metade para Zeus e metade para a humanidade. A metade destinada ao deus era composta de ossos e gordura, enquanto na outra metade estava a carne. Assim, os homens passaram a consumir a carne do boi que lhes foi destinada e usar o resto, os ossos, para fazer oferendas ao deus. Quando Zeus descobriu a pegadinha de Prometeu, ficou irado. E tomou o fogo da humanidade. Prometeu, revoltado, rouba o fogo de Zeus e leva-o de volta para os humanos. O titã e os homens, então, são novamente punidos (sim, parece uma novela): Prometeu é amarrado num pilar para ter seu fígado comido continuamente por toda a eternidade, enquanto os homens recebem, como castigo, a primeira mulher. Pandora.
Ariela, você com certeza já ouviu falar dessa história toda, mas repito aqui porque é importante lembrar de Pandora. Quem cria Pandora é o deus Hefesto, deus da tecnologia e do fogo, que usa o barro para dar vida a esse novo ser. Vem daí uma das conexões que muitos acadêmicos fazem entre a mitologia grega e a bíblia, objeto de seu estudo, onde o primeiro ser humano, Adão, é criado pelo deus abraâmico a partir do barro. Na bíblia, Eva, a primeira mulher, vem da costela de Adão. Um ser criado da carne do homem.
Existem muitos estudos comparando as histórias de Pandora e Eva, a maioria deles aponta o quanto a sociedade se apropria desses mitos para perpetuar a exploração das mulheres, usando a culpa como arma acusadora. Pandora porque abriu a caixa, Eva porque deu a ideia de comer a fruta. Toda mulher que pensa ou explora é punida. Já percebeu?
Isso me lembra a inglesa Mary Wollstonecraft. Uma das primeiras feministas do século 18. No seu Reivindicações pelo Direito da Mulher, praticamente uma carta aberta criticando Jean-Jacques Rousseau, lemos um ensaio profundo sobre o que a elite intelectual europeia da época considerava cidadão. E a quem essa elite sistematicamente negava direitos. Esse texto foi uma das primeiras leituras feministas de que se tem notícia. Na época, um outro intelectual escreveu um manifesto fazendo chacota de Wollstonecraft, um tal Manifesto dos Brutos, em que ele fala que se as mulheres reivindicavam o direito de serem consideradas cidadãs, os animais também poderiam. A ideia de direitos dos animais era tão estapafúrdia quanto a ideia de direito das mulheres.
E foi pelo feminismo que eu me tornei vegetariana em 2009 (e virei vegana em 2019). Foi refletindo sobre meus direitos e reivindicações que me tornei uma pessoa mais empática. Nada mais atual e batido do que o famoso “meu corpo, minhas regras”. E se ninguém manda no meu corpo além de mim, por que o corpo dos animais pode ser violado? Qual a diferença entre o meu corpo e o deles? Por que o meu sentimento de estar viva fica acima do sentimento de estar vivo de outros seres?
Essas são minhas perguntas para você aqui, Ariela.
Wollstonecraft teve uma filha pouco antes de morrer, também chamada Mary. Ela cresceu para se tornar Mary Shelley, a autora do livro Frankenstein. Eu sei que é um livro que você já leu e gosta. O que pouca gente lembra (eu sei que não é o seu caso!) é que o título completo do livro é Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Aqui eu preciso lembrar da antiga conexão simbólica entre eletricidade e fogo, pois é com os raios das tempestades que árvores entram em chamas. Raios são o fogo que cai do céu. O monstro criado pelo doutor Victor Frankenstein, protagonista da obra, é feito de restos humanos e animais, que ele rouba de laboratórios de dissecação e açougues. Desde o início da criação, Victor demonstra um nojo intenso pela mistura dos corpos humanos e não-humanos na constituição de sua obra – isso faz com que o cientista olhe para o monstro como um ser inferior. Assim como a humanidade historicamente olha para os corpos das mulheres e dos animais. Quando ele dá vida a criatura, naquela icônica imagem da eletricidade acordando o monstro (que no livro não chega nem perto da emoção dos filmes, eu confesso), vemos o indício da modernização do mito. Nessa composição, o doutor Victor Frankenstein é o próprio Prometeu que rouba o fogo dos céus (deus/ciência).
Muito mais para frente na obra, quando o monstro já está em busca de vingança, há um confronto entre ele e o irmão mais novo de Victor, William. Nessa cena, o garoto grita e acusa o monstro de querer matá-lo e comê-lo. Exatamente o que fazemos com os animais. Diferente de Victor, William vê a criatura com o potencial assassino que tem. Mais tarde, o monstro revela a Victor: não se alimenta de carne.
Mary Shelley escreveu sobre um monstro feito de carne humana e não-humana e que, apesar de assassino, recusa a ideia de comer carne.
Estamos falando de um livro escrito em 1818. Na época, outros autores do que seria conhecido hoje como movimento gótico também publicaram textos sobre o tema do vegetarianismo (eu adoraria escrever sobre isso, se meus leitores gostassem da ideia). Toco nesse assunto com você, minha amiga, porque sei que literatura te interessa. Porque sei que conversar sobre histórias é um jeito ótimo de abordar as questões difíceis.
Leio sobre o tema há muito tempo. Desde que rompi com o consumo de carne, eu questiono minha decisão frequentemente. Para mim, é importante manter-me afinada nas minhas maiores convicções. E respeitar os animais é uma delas.
Até agora, em 13 anos, nunca encontrei uma razão para voltar atrás.
Por isso, vou tentar responder às duas perguntas diretas da tua carta.
“O país acabou de passar por um ciclo eleitoral no qual uma das promessas mais repetidas foi a volta do churrasquinho e da cervejinha no final de semana. [..] Se o sonho é o churrasquinho, cabe a nós ter um padrão de obediência ética que nos afastaria a esse ponto dos outros?”
Quem são esses “outros”? Olha, eu venho de uma família bem humilde. No lugar de onde eu vim, tem muitas pessoas que não terminaram sequer o ensino fundamental. Desde que eu virei vegetariana, nunca deixaram de fazer uma comida apropriada para minha dieta em todas as refeições em que estive presente. Em 2019, quando fui passar o Natal em Porto Alegre, minhas tias que nunca tinham ouvido falar sobre veganismo me surpreenderam com vários pratos veganos na ceia. Todo mundo tem Google, sabe? A ideia de que o veganismo é uma coisa inacessível e classista é uma coisa que eu observo a própria elite brasileira usar de desculpa para não admitir duas coisas. 1) Que tem consciência do sofrimento animal, e ainda sim continua compactuando com a tortura dos bichos em prol do seu próprio prazer e 2) que não tem ideia nenhuma de como funciona a vida numa classe social menos favorecida que a sua, mas ainda sim quer usar uma ideia de comida-afeto que eles tem sobre essas pessoas para lavar as mãos da própria culpa.
Desculpa minha franqueza, mas essa ideia de que devemos nos pautar por uma ideia fantasiosa da classe C é paternalista, porque ignora que existem vegetarianos e veganos em todas as classes sociais. Além disso, o veganismo é uma prática contínua. E o diálogo sobre os problemas da indústria da carne tem espaços mais produtivos onde acontecer, principalmente se o objetivo for uma ação efetiva de mudança. Ainda sim, o famoso trabalho de formiguinha é real, se ele não tivesse efeito, não estaríamos vendo mudanças o tempo todo.
No mais, nunca acreditei que apontar o prato de comida de alguém fosse dar em uma boa conversa sobre exploração animal. Minha política pessoal, inclusive, é nunca conversar sobre o assunto enquanto estou comendo. Ou enquanto meus interlocutores estão comendo. Porque comida não é só alimentação, mas também é cultura (acho que entendi isso lendo Jonathan S. Foer). Se alguém questiona que a minha feijoada vegana não é feijoada de verdade, porque não tem pata de porco e gordura e sabe-se lá mais o quê, é difícil estabelecer um diálogo quando a pessoa vem com a convicção formada. Para ela, minha feijoada vegana é um ataque, mesmo que eu não esteja obrigando ninguém a comê-la comigo. Mas no fim, o que eu chamo de “situação de feijoada” é igual tanto para mim quanto para outra pessoa: uma razão para reunir os amigos no sábado, tomar uma cerveja, comer até dizer chega, celebrar a vida.
Quando você fala de “obediência ética” eu não poderia me identificar menos. Ser obediente é não mudar as coisas. É seguir o padrão, conformar-se, ficar ali no quentinho do conhecido. O veganismo, enquanto política, é a clara desobediência ao sistema.
Então, colocar o veganismo como obediência ética é fechá-lo em uma ideia falida de que existe apenas um tipo de veganismo, quando somos uma multitude. O meu veganismo não tem nada a ver com a ética que as pessoas procuram na religião ou na moral. O meu veganismo tem a ver com políticas públicas e empatia. Tem a ver com estender o respeito do corpo para outras espécies e não apenas a humana.
E digo mais. Se existe uma única ação prática que uma pessoa anticapitalista pode adotar hoje em dia para fazer diferença no mundo de forma simples e acessível, com certeza é: evitar comer carne. Você estará agindo simultaneamente contra a indústria, o desmatamento da Amazônia e o agronegócio sem nem precisar pegar em armas.
“Várias sociedades já tiveram seu grupo de ascetas, que estão dispostos a domar seus sentidos de maneira radical. Podemos contar com a existência desse 1%. Mas há poucas sociedades de ascetas, que contribuem com os outros 99% necessários para mudanças significativas. Se estamos comprometidos com o bem-estar animal, será que faz sentido apostar no crescimento desse 1%? Se acreditamos também que as comunidades podem ser mais éticas, será que não conseguimos imaginar uma ética que esteja ao alcance desses 99%? Na média, será que faz sentido apostarmos mais no crescimento dos zero-carne do que no da massa de pessoas dispostas a fazer ajustes incrementais?”
Como eu disse lá no início, nós não somos 1%. Na verdade, o único dado que eu achei com esse número foi o que aponta que vegetarianos eram 1% da população norte-americana em… 1971. Hoje são 10% aí nos EUA, onde você mora. No Brasil, são 14%. E na Alemanha, 30%. No mais, a imagem do asceta me parece uma fantasia no imaginário de quem começa a botar a mão na própria consciência. É muito fácil colocar as pessoas num lugar inalcançável para tornar as coisas mais difíceis para a gente mesmo. Chamar alguém de asceta é conferir uma aura de privação de prazeres e perfeição moral que não condiz com a vida de nenhuma pessoa vegana que eu conheço. Inclusive, cabe aqui dizer que o próprio veganismo não é perfeito e dentro da comunidade vegana existem discussões enormes e sem resposta. E o que é a vida se não uma coleção de perguntas sem respostas certas?
Muitos amigos reclamam sobre “veganos chatos”. Frequentemente eles dizem que eu sou uma não-chata, mas na minha experiência passada, o que acontece é o seguinte. Já estive na posição de estar comendo quieta no meu canto e alguém se aproximar para perguntar sobre vegetarianismo. Eu costumo declinar de conversar sobre isso quando estou comendo, como comentei antes. Mas quando eu era mais nova e a pessoa insistia, eu acabava cedendo. Em 100% das ocasiões a pessoa terminava aborrecida. E anos depois alguém comentava “lembra daquele churrasco em 2010 em que a Vanessa ficou criticando a nossa picanha?” e eu com cara de palhaça, porque a memória que as pessoas guardam é essa. Sendo que eu não queria falar nada para início de conversa, mas cedi a responder as perguntas dos curiosos. Por isso, hoje em dia, recuso-me a cair na armadilha.
Então assim, eu acredito que falta muito às pessoas em geral assumirem responsabilidade pela própria consciência. Não adianta botar a pessoa vegana num pedestal de moralidade e vê-la como um asceta, porque além de dar essa ideia falsa de pureza espiritual, também adiciona um fator de distância prática do veganismo que não é real.
Enfim. Esta carta poderia ter o triplo de tamanho, mas vou parar por aqui. Estou até me abdicando de jogar citações para não ficar gigante. Quando começamos a falar em trocar essas cartas sobre esse assunto tão complexo, nunca imaginei que faríamos assim, nos dias que antecedem o Natal. Acho a data curiosa, mas espero que o assunto chegue suave para quem está aberto a conversar.
Confesso que me senti levemente chateada com a ideia de responder sua carta depois do Natal, por isso dei uma apressada e furei meu próprio recesso de escrita. Mas tudo bem! A única coisa constante da vida é isso: a mudança.
Continue sempre perguntando!
Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa.
Agradecimento especial
Imenso obrigada a ti, Caesar Ralf, que primeiro leu esse texto, mesmo estando de cama junto comigo. Obrigada por ser uma constante inspiração de amor e escuta há quase dez anos na minha vida.
E obrigada demais, meu amigo Bruno Anselmi Matangrano, por ler essa carta hoje de manhã, pelas palavras de apoio e por ser sempre essa pessoa preciosa com quem consigo conversar das coisas mais difíceis e que, de alguma forma, me faz sempre ver o mundo de um jeito mais gentil.
Livros do Bruno para vocês irem atrás agora:
Satélite de recomendações
O livro Comer Animais, de Jonathan S. Foer, que recomendo para todo mundo que tem curiosidade sobre o assunto (livro que a Ariela leu e comentou na carta dela).
O vídeo Veganismo à esquerda, da Tese Onze.
O vídeo Como ser vegano gastando pouco, da Larica Vegana.
Gostou do assunto? Então me ajuda a saber se seria legal escrever mais sobre isso em 2023!
Vejo vocês no Natal.
Por hoje é só!
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Esse texto, Vanessa <3
> Chamar alguém de asceta é conferir uma aura de privação de prazeres e perfeição moral que não condiz com a vida de nenhuma pessoa vegana que eu conheço.
100% isso. Eu imagino que para algumas pessoas pode ser um sacrifício, no meu caso foi um alivio aderir ao veganismo e não ter mais essa discussão dentro da minha cabeça. Não consumo, está resolvido, não é mais uma questão. Mais ou menos como disse Ana Rüsche nos comentários, sinto que deveria ter começado antes.
Boas festas e bom recesso!
Meu primeiro contato com o vegetarianismo foi na década de 70, quando comecei a praticar a ioga e meu mestre nos falava sobre as mais variadas formas de praticar a ahimsa (não violência). Não existia internet e não era fácil encontrar informação (ou empatia) para manter uma alimentação sem proteína animal. Nos anos 90 fui vencida quando engravidei e depois cuidei da alimentação da minha filha. É preciso muito conhecimento e suporte emocional para manter decisões que envolvam crianças. Ao longo da vida flertei com o veganismo (vegetarianismo estrito) e tentei me manter fiel ao ovolactovegetarianismo. Enquanto isso, assisti o mundo despertar para outras questões que envolviam o vegetarianismo-veganismo. Até o dia em que resolvi fazer um período sabático, já nos meus 50 anos, e finalmente me tornei vegana. Me senti bem e em paz com a minha decisão. E hoje, beirando os 60, sou esporadicamente julgada ou questionada com relação às minhas escolhas alimentares. Já ouvi que a minha opção está atrelada a uma escolha individual, e que é só um estilo de vida. Fico feliz demais ao ver tanta discussão e informação sobre o assunto. Acredito que o caminho é esse.