Se eu não puder brincar, não é minha revolução
Barbie, Barbarella, Donna Haraway e seus ciborgues de carne e osso
TEMPO DE LEITURA: 8 minutos.
Uma vez eu estava na cama com um namoradinho ali pelo final da adolescência, quando minha bunda pressionou o controle remoto e a televisão do quarto do garoto ligou. Ele continuou fazendo sabe-se lá o quê em mim, enquanto minha atenção foi totalmente sugada pela imagem da Jane Fonda na tela. Ela estava em uma máquina bizarra, a mistura de uma cama de bronzeamento artificial com um acordeão, enquanto um homem de meia-idade chamado Durand Durand, vestido com uma espécie de roupão intergalático, apertava botões em um teclado e a ela gemia, gemia e gemia, até a máquina soltar fumaça e pifar. Eu me perguntei: essa mulher está… tendo um orgasmo? Na televisão? Eu não sabia ainda, mas estava entrando em contato com o que viria a ser meu filme favorito de todos os tempos: Barbarella (1968).
O filme é de antes da Jane Fonda ser conhecida pelos vídeos de malhação para donas de casa americanas na década de 1980 — ela é uma das precursoras do conceito de fazer exercício na sala de casa, ou seja, Fonda correu para que a gente pudesse suar tranquilamente em confinamento na pandemia — e muito antes de ela dar a volta por cima e virar um ícone do ativismo (não o de sofá, mas o ativismo de atividade mesmo, de fazer protesto na rua e levantar dinheiro para causa animal, feminista, gayzista, esquerdista e tudo isso aí que a gente ama). Mas foi com Barbarella que ela começou a ser detonada na mídia por ser mais uma gostosa pelada no cinema.
Na historia, Barbarella é uma astronauta que vive em um futuro em que não existe mais guerra e nem violência. Ela é chamada pelo presidente da Terra para encontrar um cientista desaparecido que está produzindo uma arma de destruição em massa nos confins da galáxia. Durante essa jornada, Barbarella descobre novos lugares, conhece todo tipo de gente e tem a chance de fazer sexo de verdade. Explico: nesse futuro distante, as pessoas não tem mais relações sexuais como hoje; elas usam uma substância que coloca as mentes em sincronia, dispensando o contato fisico. O rala-e-rola acontece apenas na mente. Parece familiar? O conceito foi explorado depois em outros filmes (como o Demolidor), mas não é a toa que o dispositivo usado para o sexo seguro em Barbarella é uma pílula. Os contraceptivos femininos de uso oral estavam recém se popularizando na época e eram alvo de grande crítica. Não é difícil fazer a conexão entre a vida real e o cinema — será?
Muitas resenhas sobre Barbarella comparam os aspectos físicos de Jane Fonda com uma boneca e eu acho que não é uma coincidência, tampouco uma obviedade. Contraceptivos, dildos, bonecas e vibradores tem uma coisa em comum. Eles nos permitem experimentar, criar fantasias e brincar com o desejo. Isso mesmo: brincar. Críticas mais recentes comparam Barbarella com a Barbie, mas na época do lançamento de Barbarella a boneca tinha menos de nove anos de existência. Ela ainda não era o modelo de sucesso que conhecemos hoje. Assim, é interessante navegar pelo o que as pessoas escreveram sobre o filme na época. Uma das minhas críticas de cinema favorita, a aposentada Renata Adler, do New York Times, disse que a obra era um insulto às mulheres. Ela comentou1, logo após o lançamento, que se tratava de um “efeito pós-Múmia”, em referência ao filme A Múmia (1959), estrelando a belíssima Yvonne Furneaux, cuja aparência impecável era um ícone. Adler disse que não via mais nenhuma mulher boa ou decente nas telas. Como se a impecável beleza e aparente docilidade de Furneaux tivessem criado um efeito contrário em outras produções. Foi fácil encontrar outros artigos da época detonando a Jane Fonda e criticando Barbarella por ser uma comédia barata em forma de aventura no espaço, mostrando uma mulher que se jogava no chão, ficava suja, usava maquiagem nada convencional e viajava sozinha pelo espaço.
Minha obsessão por Barbarella é interminável por causa das opiniões diversas e confusas sobre o filme. E porque toda vez que eu assisto, encontro algo novo para pensar. Talvez por isso eu tenha tanta dificuldade em escrever sobre ele, pois dá para falar sobre tecnologia, política, luta de classes, crise climática, feminismo, bissexualidade, não-monogamia… A lista é longa. Uma das coisas mais legais que já me aconteceu na vida foi encontrar, totalmente por acidente, a coleção completa dos quadrinhos franceses de onde Barbarella foi adaptada. No quadrinho, é implícito que ela faz sexo com Diktor, um robô. Parece uma grande ironia pensar que uma mulher estava transando com um robô no espaço, em um futuro imaginado nos anos 1960, quando hoje estamos alarmados com as bonecas infláveis sendo substituídas por modelos inteligentes de altíssima performance. Você achou que apenas os artistas estavam na pior com as ferramentas de inteligência artificial? Achou errado. Nem as trabalhadoras sexuais estão livres da ameaça das máquinas. No futuro, todo mundo pode ser substituído por uma e Barbarella está chacoalhando a verdade na nossa cara há mais de 50 anos. Mesmo que a heroína do cinema não tenha desfrutado de uma máquina humanóide nas telas, as ideias sobre a mecanização do sexo estão ali. Pense na cena da Jane Fonda gemendo dentro da Excessive Machine, a máquina que descrevi no primeiro parágrafo. Durand Durand usa a Excessive Machine para matar as pessoas de prazer.
Mas se a vida de Jane Fonda foi um pequeno inferno quando seu papel em Barbarella a transformou em um símbolo de soft porn, no século 21 ela teve sua grande reviravolta. Estrelando a série de comédia Grace & Frankie (2015), ela dá vida a uma personagem que, na segunda temporada, desenha e produz um modelo único de vibrador. Eu tenho especial carinho por essa série, justamente porque ela faz o arco completo de redenção para Fonda. De usuária de uma máquina de prazer que pretendia matá-la nos anos 1960, no futuro ela ganha uma personagem que elabora toda a tecnologia de um dispositivo de estímulo sexual. Fonda deu muitas entrevistas contando que fãs da série mandaram vibradores de presente para ela. (Quem dá bola para os críticos quando os fãs expressam sua opinião de uma maneira tão mais elaborada, né.)
Uma mulher brincando de sexo assusta muita gente, um ciborgue bricando de sexo assusta muito mais
Barbarella tem um subtexto muito interessante sobre “bolhas”, termo que usamos muito hoje em dia para definir as esferas de relacionamento na internet. Essa notícia não apareceu na minha bolha. Quando o presidente da Terra interrompe a calmaria de sua vida de vagar nua e tranquila pelo espaço sideral (rompendo a bolha pela primeira vez), Barbarella não pensa duas vezes antes de aceitar a missão e partir para encontrar a arma que ameaça a paz tão preciosa dos humanos. Mas ao sair do seu mundo equilibrado e entrar no planeta onde possivelmente está a tal arma, ela descobre que lá existem multidões de pessoas vivendo em situação de desigualdade social, coisa que ela nem sabia ser possível. Lá ela também entra em contato com outras línguas, outros modos de viver, outras realidades. Não é a toa que a grande rainha do tal planeta passa a maior parte do tempo dentro de uma bolha literal, chamada de “câmara dos sonhos”.
Muitas resenhas acusam Barbarella de ser simplória e boba na sua postura de acolher e aceitar o que vê, sem tentar mudar as pessoas ou o lugar, mas essa postura meio passiva e meio observadora permite que ela faça as reflexões mais difíceis. Sobre como ter sido possível que ela passasse a vida inteira acreditando que o mundo era livre de sofrimento, que havia apenas uma maneira de fazer sexo, sem saber que existia um lugar onde seres humanos exploravam outros seres humanos e todo tipo de atrocidade acontecia. Assim, Barbarella percebe que ela também é sujeito de uma espécie de opressão, nada comparada àquela sofrida pelas pessoas que encontra em Sogo (a cidade cosmopolita onde ela encontra essas novas realidades), claro, mas ainda sim uma opressão. Ela vive uma ficção, um mundo ideal e pacífico que só existe para um grupo seleto de pessoas.
Donna Haraway escreve em seu famoso ensaio, Manifesto Ciborgue, que a libertação das mulheres depende da consciência de sua opressão. O conceito de “ciborgue” parece muito futurista e muito difícil de entender em um primeiro momento. Mas, na minha estrita opinião, ela usa a palavra ciborgue propositalmente para distanciar-nos da palavra “humano”, que evoca todo tipo de purismo, naturalismo e cientificismo de mau-caráter que pode ser usado para continuar subjugando pessoas com vulva à categoria de mulher — uma palavra que se define muito mais por opressões do que por liberdade.
Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de “experiência das mulheres”. Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também de experiência vivida – uma experiência que muda aquilo que conta como experiência feminina no final do século XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica.” (Haraway, p.34)
A condição mínima para identificarmos qualquer coisa como opressão é pensar em um mundo sem ela — e é impossível criar um novo mundo sem sonhar com ele, sem imaginá-lo. É impossível desejar sem idealizar e sem brincar com as possibilidades. Se tudo que fazemos conta pontos em um jogo que vale tudo, não há espaço para identificar opressões. Nesse contexto, eu penso muito no movimento automático das pessoas com relação às redes sociais, por exemplo. Se tudo o que fazemos é material para conteúdo, até mesmo nossas brincadeiras ganham tons de realidade. Não temos mais tempo para brincar.
Brinquedos de adulto, sex toys, estão em uma categoria de mecanização do prazer. Mas também fazem parte desse brincar que nos falta tanto na vida adulta — e talvez ande faltando na infância também, visto o tanto de crianças-influencers na internet. Talvez Barbie faça essa ponte, unindo a brincadeira da criança com sonhos do mundo dos adultos. Não sei. Mas os vibradores de Grace & Frankie e a pílula de Barbarella me parecem parte de um sistema do imaginário ciborgue, pois permitem que as personagens fujam da binariedade do tudo ou nada que o sistema impõe.
Se eu não puder brincar, não é minha revolução.
Você já viu Barbarella?
Expediente
Esse ensaio brotou de uma coleção de notas que fui guardando sobre Barbarella, feminismo, não-binarismo e uma porção de outras coisas que estava escrevendo para outros lugares (universidade inclusa) e espero escrever peças menores e mais concisas sobre esses assuntos nos próximos meses.
Em breve sairá uma nova adaptação de Barbarella com a Sydney Sweeney (aquela moça loira de Euphoria, sabe) no papel principal. Jane Fonda não está muito segura sobre essa adaptação, mas eu confesso que estou esperando ser positivamente surpreendida. Vamos aguardar.
Ainda estou no processo de reformatar a newsletter e dar o pontapé no novo editorial, ao que tudo indica, logo vocês vão ter ensaios melhores por aqui.
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Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/06/17/specials/southern-barbarella.html
Excelentes reflexões!!
“A condição mínima para identificarmos qualquer coisa como opressão é pensar em um mundo sem ela” – 🤯
Nunca assisti Barbarella, mas agora deixei na lista pra ver :)