No conto A sensação de poder, da coletânea Visões de robô, o clássico autor Issac Asimov nos leva para um futuro onde um homem que sabe fazer contas simples de cabeça, como multiplicação de tabuada, surpreende a humanidade inteira com essa habilidade. Nesse futuro, tudo é resolvido por computadores e nós já esquecemos até como somar e dividir sem a ajuda de uma calculadora. O problema do conto é que os humanos precisam dominar as máquinas novamente, mas não lembram mais como elas funcionam depois que as próprias máquinas tomaram conta das decisões e planos (portanto, a humanidade não sabe mais construir e controlar as coisas sem ajuda computacional). É talvez um dos contos mais famosos do Asimov e foi publicado em diversas coletâneas de ficção científica no mundo inteiro.
Não é difícil fazer a relação direta entre o uso excessivo, e muitas vezes desnecessário, das ferramentas de inteligência artificial hoje. Entre os inúmeros problemas que temos visto, pesquisas tem mostrado que muita gente está tendo dificuldade em interações humanas ao vivo, porque sem auxílio de uma máquina intermediária sentem-se incapazes de falar algo que valha a pena ser dito. Na experiência do dia a dia na universidade, eu tenho percebido que está cada vez mais penoso para os jovens terem ideias próprias, conectarem os pontos e até formarem uma opinião sobre coisas corriqueiras. Parece contraproducente, já que a internet é a terra das opiniões, mas vejo que na hora de “sujar as mãos” as pessoas não sustentam bem os argumentos — porque não são seus próprios argumentos. E veja bem, não há nada de errado em construir um argumento com base no que outros falaram, mas mesmo para fazer isso é necessário conectar com o próprio repertório e, assim, ter ideias próprias.
Sem revelar o que de fato acontece no conto de Asimov, ele termina nessas palavras:
Sua própria cabeça era um computador. E isso lhe dava uma fantástica sensação de poder.
Essa sensação de poder citada é a capacidade que uma personagem adquiriu ao aprender como fazer contas sem auxílio de máquinas. Se o conto fosse adaptado para os dias de hoje, essa sensação de poder seria mais abstrata. Acho que seria curiosidade. Sabe aquele ímpeto brutal de ir atrás, buscar informações, pesquisar pra ver se é aquilo mesmo? A curiosidade pode ser uma sensação de poder quando somos livres para pesquisar o que nos atrai e intriga. Mas para uma pessoa se sentir curiosa, ela precisa sentir-se intrigada, seduzida. E ter um certo tesão em querer saber. Com a abundância de conteúdo chegando sem que nós os busquemos por espontânea vontade, nossos sentidos ficam empapuçados de informação. O cansaço cognitivo é real.
Como ter disposição de sentir curiosidade pelas coisas se tudo vem mastigado, interpretado, explicado…?
No conto do Asimov, fazer contas era um passatempo para o homem que (re)ensinou aos outros a calcular. É emblemático usar o termo “passatempo” aqui, parece uma palavra arcaica, quase sem sentido. Quem desfruta tranquilamente de passatempos? Algo assim, sem compromisso nenhum, que não se faça pensando na hora de postar o resultado final? É difícil generalizar o passatempo mais comum das pessoas hoje, não consigo pensar em nada muito elaborado. Games, doomscrolling1?
Parece até uma blasfêmia dizer que games são passatempo, acho os detalhes que cercam o universo atual dos games tão curiosos; o registro de horas totais jogadas, os memes sobre isso. É a matematização da diversão. Tem gente que praticamente bate hora para jogar. (Isso não é uma crítica, até porque no estado das coisas, eu fico feliz que façam mais o que quiserem com o próprio tempo.) Esses cálculos e burocracias nos games, junto com o constante compartilhamento dos hobbies nas redes sociais, me dão a sensação de que mesmo nossos passatempos estão tão cronometrados e calculados quanto o trabalho que paga as contas.
Não é como se houvesse muito tempo livre em geral, então essa burocratização dá uma sensação que o pouquinho de ócio vira algo funcional, meio utilitário. É preciso ter passatempos para descansar a mente e… ser mais produtivo.
No trabalho. 🙄
Pode ser um pouco de nostalgia, mas no passado tínhamos momentos longos de ócio. A viagem longa de ônibus, a tarde de domingo, o famoso “ficar à toa”. Momentos em que hoje a maioria de nós está com os olhos pregados numa timeline cheia de entretenimento. A cabeça não chega a descansar de verdade. Então mete-se para dentro os mil conteúdos sobre tudo e sobre nada, os detalhes irrelevantes da vida de amigos, conhecidos, desconhecidos e famosos, piadas infames, blabla. Não há deserto, não há vazio. Tudo está preenchido. Também não há despertar da curiosidade, pois nossa atenção está espalhada por todos os cantos.
A curiosidade requer um pouco de ócio. Um pouco de espaço mental. Tenho a sensação de que os passatempos de hoje enchem a cabeça e os sentidos, ao invés de nos fazer relaxar. Para conectar ideias precisamos de uma mente ao mesmo tempo atenta e relaxada.
Utilitarização do futuro
Há muito tempo as escolas são tratadas como um meio de preparar jovens humanos para o mercado de trabalho. Eu poderia dizer algo meio dramático como “já não formamos mais pessoas, mas sim trabalhadores”, mas a verdade é que sempre foi assim para a classe trabalhadora. Mesmo aqui na Suécia, lugar em que a alfabetização da população geral é estimulada desde o século 172, a educação do proletariado também seguiu historicamente a lógica de ensinar até onde convém a função profissional do indivíduo. A partir dali, não é necessário educar-se mais. É um problema que atravessa fronteiras.
A grande questão do uso abusivo de IA em escolas e universidades é: ela confirma a lógica utilitária da educação.
Antes nós até conseguíamos fingir um pouco que grande parte das pessoas estão na aula para aprender algo e não apenas para cumprir as tarefas necessárias para conseguir um diploma. Com o hábito das pessoas de delegarem essas tarefas para o ChatGPT, por exemplo, não tem nem como fingir. O grande objetivo é entregar, entregar e entregar. Não tem como culpar as pessoas por isso, porque a precarização da rotina urbana exige que todo mundo siga otimizando a própria vida. É claro que vão delegar qualquer tipo de trabalho mental às máquinas, incluindo a própria opinião.
Seguimos construindo um futuro utilitarista. Em momentos e espaços de aprendizagem, onde teoricamente temos tempo para ser curiosos, ir atrás, descobrir, desmembrar e experimentar, essa parte da curiosidade está sobreposta pela busca do desempenho.
As preocupações de quem prioriza o desempenho estão no futuro. Um futuro muito específico, onde não há pensamento crítico, apenas possibilidades de ser prático e útil. Diria até que o capitalismo nos obriga a pensar em um mono-futuro que idealiza cada um de nós como parte de uma massa utilitária, mas que nos ilude sobre sermos pequenas estrelas numa tela de celular.
A essas alturas todo mundo é um pouco delulu3.
Sensação de poder
Eu estou parada no jardim. Em Estocolmo, o sol está se pondo às 3 da tarde, observo o céu lilás pegar fogo na linha do horizonte e então, escuridão. Desbloqueio a tela do celular e me pergunto: por quê?
Por que eu peguei o celular?
Não estou esperando nenhuma notícia, não quero falar com ninguém, não quero fazer nenhuma conta na calculadora, as horas eu já sei pelo relógio de pulso… Me sinto cativa do hábito de olhar para a tela por razão nenhuma, então me pergunto: como isso aconteceu?
Como eu preenchi meu ócio com uma tela de maneira tão eficaz?
Procuro respostas nos livros. Procuro respostas nos textos. Procuro respostas aqui; escrevendo.
Questionar me dá de volta uma sensação de poder.
Feliz dia da ficção científica!
Agradecimento especial aos amigos Ana Rüsche e Thiago Ambrosio Lage, com quem tenho conversado horas e horas sobre os assuntos deste texto.
Onde ler e ouvir o conto Sensação de poder
Ou escute aqui:
🛸 Sinal de vida
Nesta seção, trago coisas interessantes para você conhecer sem precisar acessar nenhuma rede social.
vídeos aleatórios de celular feitos 12 anos atrás e exibidos de maneira randômica;
as reflexões do Lisandro sobre a pós-graduação em Edição e Gestão Editorial;
eu já falei para vocês sobre o Harmut Rosa, mas essa semana o Rodrigo Ghedin escreveu sobre ele e as ideias de aceleração no Manual do Usuário;
e de quebra também saiu uma entrevista com o querido Marcio Melo, da newsletter Imagina Só.
🛰️ Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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desde que saí das redes sociais, há quase um ano, tenho percebido o quanto elas sugam o nosso tempo livre, os momentos "vazios" de contemplação (o trajeto no ônibus, por exemplo), o descanso da mente.
Mais um texto ótimo, como sempre!
Por aqui o passatempo é montar quebra-cabeças a noite, sem tempo cronometrado, sem mostrar o resultado final pra ninguém e sem utilidade nenhuma a não ser realmente passar-o-tempo fazendo algo que gosto. Mas muita gente se choca quando eu digo que esse é meu "hobby", como se fazer algo pra si sem resultados produtivos no final fosse uma bela perda de tempo (pra quem?)