A inveja anda de mãos dadas com a vaidade, né?
Uma vez revelei por aqui quantos leitores essa newsletter tinha. Foi em dezembro, ou seja, em outra vida. Na época eram 300 pessoas (recebendo os textos direto por e-mail) e uma conhecida mandou mensagem perguntando desde quando eu estava escrevendo a newsletter. Tipo uns 5 meses, respondi ingênua. Digo que essa pessoa é “apenas uma conhecida” com muito gosto, porque amiga ela não era. Mesmo que tenha me chamado com o popular “miga td bem” no chat do instagram. (Aliás, que ideia horrível essa que a humanidade teve de começar a usar o chat do insta para conversar).
Papo vai, papo vem, a moça manifestou a vontade de também começar uma newsletter ou blog, mas como ela não era conhecida, não ia “servir de nada”. Desdenhou eu e meus 300 leitores com gosto. Deu a entender que eu me esforçava por muito pouco, nem no instagram as coisas pareciam bem para mim. Eu, com meus simplórios quinhentos e poucos seguidores por lá, fiquei meio magoada com a ofensa gratuita, mas passou.
Tempos depois essa mulher sumiu, provavelmente porque eu parei de dar corda para a conversinha mole, mas uma coisa que ela disse me pegou.
Tá todo mundo repetindo
Essa foi a frase que ficou. 1Tá todo mundo repetindo. E ficou porque eu concordo com ela, mas não pelos mesmos motivos. O que a mulher apontou foi uma repetição estética. “Todo mundo gosta da mesma coisa, como eu vou me destacar?”
A preocupação toda era em como ser autêntica mesmo seguindo o padrão. Porque ela mesma disse que achava bonita a estética das coisas que via nas redes sociais. Ou seja, ela mesma queria repetir o repetido.
Esse papo vai e volta na minha cabeça. Foi como se a mulher tivesse virado um ouroboros do próprio desejo. Admirava, desejava e queria sim aquilo tudo, não só como consumidora, mas como produtora de conteúdo (vocês também estão com ranço desse termo?). Engoliu a si mesma numa agonia de faz-não-faz. O tempo passou e ela não fez nada. Encontre os 7 erros nessa composição.
Para mim, o erro crucial era simplesmente a incapacidade de identificar a inveja. Coisa simples da natureza humana. Aquele velho gagá, Freud, disse que inveja é uma angústia (o que não é uma angústia para psicanálise, né?) frente ao que os outros tem. As coisas que a pessoa não tem adquirem uma importância maior do que todo o resto. Então, os 35 mil seguidores da Fulaninha no instagram são muito mais importantes do que os 500 seguidores da pessoa invejosa. E por conta disso, ela não se move. Permanece fixa desejando o que não tem.
Cara, todo mundo teve ou vai ter inveja em algum momento da vida. Se não teve, provavelmente é por questão cultural. (Eu adoro um podcast perdido no spotify que são aulas de um professor de psicanálise da PUC-SP, em que na primeira delas ele fala que é impossível fazer análise de alguns povos indígenas porque o contrato social deles é completamente diferente do nosso e eles não tem essas neuroses). A questão é saber identificar, aceitar e (se for o caso) lidar. Eu acredito que o sentimento invejoso só é prejudicial quando nos paralisa. Infelizmente, quando a palavra de ordem é tipo “seja autêntica seguindo esta fórmula pronta que todo mundo usa”, é bem difícil não se sentir sufocada pela contradição. É mais fácil simplesmente não fazer nada do que se expôr à esse contrassenso emocional disfarçado de dilema intelectual. E mais difícil ainda é arriscar fazer tudo diferente da fórmula pronta, porque fracassar parece dolorido demais. Principalmente para quem sente que arriscar uma vez é arriscar tudo.
Se tá tudo igual, por que o outro tem mais sucesso que eu?
Lembra do urinol da arte moderna? Para mim, é mais ou menos nessa linha.
O malandro do Duchamp submeteu esse urinol, objeto também conhecido como mictório, como uma obra de arte chamada Fonte, para fazer parte de uma famosa exposição em Nova York, onde ele mesmo era membro da diretoria (o que explica porque ele usou um pseudônimo), há 105 anos atrás.
A obra não foi aceita. Mas as pessoas estão até agora discutindo sobre ela. Discutindo perguntas como:
Se todos os mictórios do mundo são iguais, por que aquele virou uma obra de arte?
Porque está assinado, o que confere um status de obra de arte instantâneo e incontestável, mesmo que o Duchamp tenha assinado com o pseudônimo R.Mutt. Porque foi candidata a estar exposta em uma galeria. Porque pode simbolizar algo além da nossa capacidade de compreensão imediata, como os reles mortais que somos frente à mente genial de artistas plásticos. Porque ninguém teve coragem de dizer “que ideia estúpida”. Porque várias pessoas disseram “que ideia estúpida” e assim a obra ganhou um tom de rebeldia. Porque nada disso que eu falei faz sentido. Porque tudo isso que eu falei fez sentido.
Veja, contradição.
Qual foi, então, a autenticidade que ele trouxe com a Fonte?
As ideias que essa obra trouxe têm inúmeros desdobramentos interessantes. Mas uma das coisas que mais me chamam atenção sobre essa história é que mesmo se alguém tentasse roubar ou quebrar a obra, Duchamp poderia comprar um urinol novo e repor no lugar do outro. Afinal, é um objeto fabricado em escala industrial. Só mais um de uma série de cópias.
“O grande poder das ideias é que não é possível desinventá-las.”
Trecho do livro Isso é arte?, de Will Gompertz.
Uma fábrica reproduz infinitamente um mesmo objeto, porque o protótipo deu certo e seu uso serve para muitas pessoas.
Hoje nós reproduzimos ideias, estéticas e estilos porque eles funcionaram com os influencers que nos inspiram.
Tá todo mundo repetindo. No instagram, no tiktok, no twitter.
(Influencer é outra palavra-ranço, né?)
Sede de protagonismo
Essa semana eu deletei meu Facebook. Bom, quase. Porque o Facebook não permitiu que eu deletasse minha conta imediatamente – rolou uma mensagem tipo assim “Vamos suspender sua conta por 30 dias. Vai lá e pensa bem nessa sua atitude de querer sair daqui. Se você não desistir dessa ideia estúpida, a gente então deleta sua conta, sua louca ingrata”.
Quando eu era criança, meus pais mostravam os álbuns de fotos para as visitas. A gente comentava fatos, relembrava momentos. Era uma coisa intimista e ocasional. Pensar nisso me deu uma luz sobre meu desconforto com as redes sociais: não faz mais sentido compartilhar tantos detalhes aleatórios da minha vida com centenas (milhares?) de pessoas. Não faz sentido a minha vida ser um livro aberto 7 dias por semana, 24 horas por dia para qualquer um.
Mesmo restringindo a visualização apenas para amigos na plataforma, existe uma projeção bizarra que me apresenta da mesma forma para uma antiga colega de escola de Porto Alegre, que não vejo há 15 anos, e meu ex-chefe da primeira empresa onde trabalhei aqui em Estocolmo, 6 anos atrás. Em 12 anos no Facebook, não tem nada no meu “conteúdo” que me faça sentir desconfortável com nenhum dos dois. Mas algo nisso tudo me deixa quebrada. É como se eu projetasse várias dissonâncias do meu ego para o mundo.
E talvez eu só sinta isso porque tive a chance de experimentar um mundo analógico antes de começar a existir nas telas de computador e celular dos outros. Não é à toa que minha arroba nas redes sociais é vanessa in pixels, porque não sou eu que as pessoas veem; é uma parte de mim, aquela que se apresenta apenas em pixels.
“[A aura de personagem principal] descreve qualquer situação em que a pessoa faz de si o centro da atenção, o foco da narrativa, como se as câmeras fossem treinadas para seguir ela e apenas ela. […] O termo pode ser usado de forma positiva, reconhecendo uma forma de autocuidado - coloque-se sempre em primeiro lugar - ou como uma acusação, uma chamada ao narcisismo -”
Todo mundo tem “aura de personagem principal” agora, artigo do New York Times (tradução minha)
Desde 2020 alguns vídeos do tiktok falam sobre o tal main-character energy. A tal aura de personagem principal, como escolhi chamar. É o reconhecimento puro da consciência de performance como parte da vida, já que tudo pode ser material a ser postado. Ter energia de personagem principal é simplesmente fazer uma grande curadoria de si mesmo.
Para muita gente da minha faixa etária – 30 anos –, ou mais velha, manter uma newsletter, um insta, um tiktok, etc, é praticamente um segundo trabalho. Principalmente se a profissão da pessoa depende disso. Mas para gente mais jovem, manter uma persona online é simplesmente parte da experiência de existir. Não há uma separação entre o concreto e o abstrato.
O que eu encaro como uma “sede de protagonismo” nas pessoas da minha idade que sonham com a fama nas redes, para os mais jovens é a parte básica de viver em sociedade.
É quase um update no famoso contrato social.
Inveja e vaidade
Enquanto escrevia aqui, tive que fazer uma pausa porque ia começar minha sessão de terapia. Melhor dizendo, a sessão de análise. Então, eu contei de coisas que me irritavam e achei que estava com a cabeça já muito longe desse texto. Eu estava falando (mal) do comportamento de uma pessoa, quando a psicanalista me interrompeu no meio da frase, “isso é uma questão de ego?”.
Pensei um bocadinho. “Não sei se eu saberia definir o que é uma questão de ego”.
Pensei mais um tanto. “Para mim isso fica entre a vaidade e a inveja”, lancei. Foi aí que entendi minha frustração geral com a internet.
A inveja e a vaidade andam de mãos dadas por aqui e nenhum de nós vai escapar.
Satélite de recomendações
Série
Sandman. (Na Netflix.)
Assisti tudo de uma vez mesmo, sentei e fui até o final. Zero arrependimentos.
and… RENSGA HITS na GloboPlay. Tem só 4 episódios até agora, mas é o drama que eu (e você) precisava.
Newsletter
Saiu uma ótima edição da Cuca Fresca, “Quanto tempo dura um Objeto”. O texto toca na questão do consumo de fast fashion sem tanta culpa, vendo as coisas de um ângulo que faz falta nesse mundo de cagação de regra em que a gente vive.
Vídeo
Nesse vídeo curto, Ann Temkin, curadora do MoMA, fala sobre os famosos readymades de Duchamp. (Em inglês, com legendas em inglês).
Podcast
O que é um museu? Nesse episódio do Pistolando, a Letícia Dáquer e o Gabriel Fernandes conversam com a museóloga Maŕilia Bonas sobre museus e muito mais.
No mais… Um beijo no Jô ❤️.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Poderia ser título de uma edição da Tá todo mundo tentando, né.
"Mas para gente mais jovem, manter uma persona online é simplesmente parte da experiência de existir. Não há uma separação entre o concreto e o abstrato." Eu percebi isso recentemente conversando com meus sobrinhos. Pra eles, o perfil online não é "uma versão minha na web". É só uma conta. Se perder acesso, tanto faz, eles criam outra. Não é incomum pra eles uma conta estar atrelada a um celular e ser substituída quando compram um novo. Entendi que as contas web pra eles não são um acervo digital, são somente ferramentas para interação.
A inveja e a vaidade andam de mãos dadas mesmo, e nossa inabilidade de falarmos enquanto agentes desse sentimento (em especial, a inveja) e não apenas alvo (e quantas vezes não há vaidade em falas como "fulana tem inveja de mim") é uma das causas para não nos resolvermos. A minha terapeuta fala de uma quadrinho em que uma pessoa está feliz com um bolo quase cheio enquanto a outra tem o mesmo bolo, mas está infeliz pois procura o único pedaço que não há ali (e que talvez, haja na grama do vizinho). Mas essa sede de protagonismo tem um viés bem negativo quando você é, nas palavras de Luri do Puxadinho do Luri, você para manter uma audiência tem a sua identidade sequestrada por ele (acho que os seus textos se complementam bastante nesse sentido). É isso, adoro os seus textos, Vanessa :) sempre com nuances