“Tudo pode ser um fetiche” disse a colega escritora Anita Saltiel. Essa declaração pode conviver tranquilamente com aquela velha máxima da internet de que todos os filmes do mundo tem uma versão pornô em algum lugar. Uma vez eu assisti um bom pedaço de uma dessas do Laranja Mecânica — que além de pornô é uma paródia com inversão dos gêneros dos personagens, o famoso gender swap — e achei engraçado como o sexo explícito com enredo pareceu menos absurdo do que ver a história original reencenada por um grupo de mulheres. (A quem interessar, o filme é de 1995 e se chama A Clockwork Orgy.)
Claro que filmes em geral podem excitar a audiência, ainda que tradicionalmente essa não seja a intenção principal do cinema. Mas essa é (quase?) sempre a intenção de um filme pornô.
Não é só o sexo que é explícito, mas o propósito da obra também. O objetivo da pornografia é estimular sexualmente a audiência. Talvez por isso eu tenha estranhado a versão pornô do Laranja Mecânica, já que eles usaram o script do filme original, que foi escrito sem o objetivo principal de excitar, apesar de ter cenas eróticas.
Sempre que nós entramos em uma sala de cinema dispostos a assistir uma narrativa de ficção, fazemos um acordo silencioso com a tela: a partir de agora eu sei que nada disso é realidade, mas eu vou engajar com a história como se ela fosse verdade. É por isso que podemos chorar, sentir raiva e até mesmo nos apaixonar por pessoas e histórias que não existem de verdade. Quem faz audiovisual, sejam aqueles que trabalham por trás das câmeras ou os que estão atuando na frente delas, sabem disso. Esses profissionais tem a intenção de causar um efeito no público. Emocionar, fazer com que a gente se identifique com as coisas etc. Isso é cinema; isso é arte, isso é técnica.
Mas quando a gente assiste a vídeos de pessoas comuns na internet, não temos o mesmo tipo de expectativa. E a intenção de quem faz o vídeo, em geral, não é a mesma de quem trabalha com audiovisual. Ou pelo menos, parte-se da ideia de que não há esse mesmo acordo de suspensão de realidade que temos com o cinema.
Nessa semana, a moribunda rede social Twitter foi à loucura com vídeos de uma moça fazendo tapioca. Eu escrevi um parágrafo inteiro aqui tentando explicar a treta com detalhes, mas me senti meio invasiva com a pessoa envolvida no caso, ainda que não tenha falado nada dela em si, mas do vídeo público que circulou por aí. Basta saber que muitos julgaram o tal vídeo como provocador — de cunho erótico — simplesmente porque a pessoa que fazia a comida era uma mulher bonita usando um decote. Muita gente problematizou o enquadramento da câmera e outros detalhes que não vem ao caso. Depois, partiram da premissa de que, se qualquer coisa pode virar fetiche, a gente tem que se preservar e evitar a exposição.
As pessoas acabaram expressando um certo horror a ideia de serem fetichizadas.
A Anita explicou, ano passado no próprio Twitter, a diferença entre fetiche, fetichismo e fetichizar. Vou citá-la aqui:
‘FETICHE é uma palavra que deriva de "feitiço". a palavra surgiu em contextos que remetiam à bruxaria, então fetiche é tudo aquilo que se aproxima do divino e causa sensações diversas, ligadas ao prazer humano. geralmente essas sensações são de cunho sexual? sim. mas fetiche não necessariamente tem a ver com SEXO em si.
um fetiche pode ser um prazer que você não consegue explicar, um desejo, algo a ser realizado, e isso não precisa estar ligado com um ato sexual.
FETICHISMO é um estilo de vida. pessoas fetichistas são devotas ao seus fetiches, vivem em busca deles intensamente. a palavra fetichismo está muito ligada ao submundo do BDSM e do kink em geral. agora, por que você não deve usar FETICHIZAR para qualquer obra, coisa ou ação? eu explico:
FETICHIZAR é uma palavra derivada do fetiche, basicamente é o ato de desumanizar uma pessoa até que reste apenas sua visão do que ela devia ser, na sua concepção.
FETICHIZAR é desrespeitar, rebaixar o ser humano e elevar o divino, é desumanizar alguém e não levar em conta a pessoa como unidade, como indivíduo com desejos e limites.’
Fetichizar uma pessoa é, então, remover sua subjetividade. Entendo agora a preocupação da Anita em explicar porque não podemos usar o termo fetichizar para qualquer coisa. Eu gostei dessa definição que liga o fenômeno à ideia de elevar algo ao divino. Porque é nessa chave que o filósofo Byung Chul-Han fala sobre pornografia e expressa, na minha visão, uma opinião surpreendentemente conservadora sobre o assunto. Ele afirma, no seu ensaio Pornografia, que a sexualidade é profanada através dos filmes pornôs. Desenvolve também a ideia de que o capitalismo “não conhece nenhum outro uso da sexualidade”.
Assim, permito-me discordar de Chul-Han pela primeira vez na vida.
Pegando o caso do vídeo da tapioca, observei que foi apenas quando a própria autora e protagonista do vídeo apareceu para expressar sua opinião no twitter que a discussão deu uma acalmada. Foi como se a gente pudesse ver ao vivo a subjetividade da pessoa surgir para acabar com a ideia do fetiche. Através da fala, ela não é mais um objeto. Ela é uma pessoa, ela tem voz, sentimentos, história e opiniões próprias. Entende-se de repente que os vídeos da moça não tem intenção de provocar a audiência sexualmente. Porém, a falta de intenção dela em erotizar a imagem não impede, assim como acontece com o cinema em geral, que a audiência veja sensualidade ali. E aí entra a argumentação da Anita no twitter: "não dá pra falar que uma pessoa cozinhando tá se sexualizando porque ela tá usando um decote."
Para muita gente ainda há de se separar, obrigatoriamente, a sexualidade de qualquer outra esfera da vida. Como se a mente e a imaginação fossem elementos, talvez até ferramentas, desconectados do resto do mundo. Parece então que a ideia é deixar a sexualidade apenas para o mundo da pornografia, mas ao mesmo tempo querem abolir a pornografia.
Seguindo nessa linha, porderíamos acusar a pornografia, então, de ser desprovida de sedução, já que nela não há espaço para o mistério; tudo é explícito. Mas até aí, por que o explícito não pode fazer parte da sexualidade também?
Quando Chul-Han afirma que a pornografia profana a sexualidade, ele primeiro coloca a sexualidade em um lugar sagrado. Um patamar acima do mundano, em um ponto ungido de divindade. Como se a sexualidade fosse limpa. Nesse sentido, a ideia de limpeza da sexualidade não se trata apenas da assepsia do corpo, mas da esterilização da fantasia, da imaginação e até da própria experimentação com o sexo. Chul-Han usa muitas ideias de Baudrillard para explicar a sexualidade como um enigma que precisa permanecer na aura do mistério a fim de ser plenamente desfrutada. Para ele, o pecado da pornografia é remover o mistério dessa sexualidade sagrada. Como se a pornografia tornasse o sexo tangível e, por isso mesmo, quase desinteressante. (Mas nós sabemos que as coisas não são bem assim, né?)
Quando assistimos um filme qualquer, o contrato da suspensão de realidade transita também para a ideia de simulação. Não é à toa que o cinema pode ser — e é experienciado tal como — uma chance de aprendermos a lidar com emoções através da história de outras pessoas. Ou de aprendermos mais sobre como lidar com nossos problemas sob outros ângulos. A ficção é uma espécie de simulação. Para Baudrillard, a simulação é a emulação de algo que não existe — ao mesmo tempo que é também o preenchimento de uma ausência.1
Se a pornografia é a simulação do sexo e se, sendo ela cinema, permite que a gente aprenda a lidar com emoções e prazeres, me parece que não está na pornografia puramente o grande crime que Chul-Han procura. E se é impossível separar a fantasia de qualquer aspecto da vida, a sexualidade continua sendo construída a partir de qualquer coisa que sustentar nossa imaginação. E assim, até mesmo uma tapioca pode alimentar uma fantasia.
O medo da fetichização me parece mais um medo do desconhecido — da certeza de que não temos controle sobre a imaginação dos outros. E sim, isso assusta. Inclusive porque, no fundo, nos damos conta que não temos controle sobre a nossa imaginação também. Afinal, se qualquer coisa pode ser excitante, tudo tem potencial para ser fetiche.
Mas tem muito mais coisa aí para gente pensar. E fico curiosa para conversar sobre isso com outras pessoas.
O que vocês adicionariam a essa conversa?
Tem algo que ainda precisamos trazer para esse papo?
Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Baudrillard, J. (1981) Simulacros e simulação.
Oi Vanessa!
Eu não li esse livro do Byung Chul Han, mas li "Agonia do Eros" e acho que na verdade, BCH consegue tirar a sexualidade do lugar sagrado sim, mas não achei conservadorismo, eu acho que "Agonia do Eros" fala mais sobre como a gente deixou de descobrir o mistério da sexualidade porque ao invés de estarmos eróticos (reconhendo a outridade das pessoas) estamos sempre pornográficos (querendo enxergar a pessoa por completo) e isso meio que se desdobra pra além da sexualidade também. Então, fiquei curiosa pra ler o texto que você citou.
Eu só diria que as pessoas estão agindo de forma cada vez mais conservadora com a desculpa de que isso é algo progressista. Acho que ainda não estamos, enquanto sociedade, com a habilidade de olhar caso a caso e pensar e pesar cada situação. A moça dos vídeos pode não se importar em ser desejada, oras. E também não é porque alguém fantasia algo com você que isso é necessariamente ruim, afinal, como você mesmo disse, as pessoas só não têm muito controle do que pensam. Acho que o medo do fetiche não é bem o medo do descontrole da própria imaginação, mas essa ausencia de aceitação da alteridade. Às vezes vão te olhar com olhar de desejo e fantasia, mas desde que não te prejudique, pode ser que não seja ruim assim? E não tem nada pra se fazer a respeito, só aceitar. Mas essas falas tentando impor essa "preservação" do próprio corpo me parecem uma tentativa de intimidar os outros em algo que eles nem tem controle.
oi van! antes de tudo, queria dizer que vi seu comentário no twitter sobre esse texto já parecer VELHO. sei que as redes nos deixam a impressão de só podermos falar sobre o assunto do momento, mas gosto bastante de ler 'análises da semana' como uma boa velha revista semanal de antigamente, sabe? resumindo, que bom que você abordou o assunto aqui porque trouxe muita coisa interessante a se pensar.
fiquei relendo algumas vezes a pergunta 'por que o explícito não pode fazer parte da sexualidade também?' e pensando no que você até comentou no grupo sobre as pessoas fugirem de alguns papos sobre sexo (considerando as desinscrições quase automáticas).
essa reserva de pensar que talvez o sexo & assuntos afins deveriam ser exclusivo como tópicos para situações mais íntimas (ou sequer conversado) pra mim tem a ver com essa afirmação que você cita do Byung Chul-Han: que a sexualidade seria profanada pela pornografia. a sexualidade seria então profanada pelo explícito? que envolve falar sobre o assunto de uma forma mais aberta?
o que me lembrou que há alguns meses estava num clube do livro em que as pessoas a-do-ram trazer uma história pessoal a partir de algum tema da leitura. mas quando o assunto chegou em descobertas sexuais na adolescência ninguém tinha um ai para falar, nenhum caso para contar e veio alguém e disse 'hm, mudando de assunto' enquanto rolava um desconforto muito estranho numa sala com pessoas adultas, enfim. gostei muito dessa edição!