Esse texto faz parte do editorial do tema corpo e é o primeiro texto do ano sobre o assunto. Eu ando meio sad girl com essas questões, e falei um pouco disso mês passado no texto “Ano que vem, não vou emagrecer“. Hoje convido vocês a pensar sobre o desconforto gerado pela imposição do amor-próprio e as agressões naturalizadas contra nossos corpos.
Quando as amigas mandam mensagens sobre situações familiares constrangedoras, frequentemente é a respeito de alguma opinião não-solicitada sobre seus corpos. 90% das vezes algum parente sentiu necessidade de dizer à mulher que ela engordou. Quando escuto esses relatos, sinto uma tristeza profunda. Penso na naturalização das agressões tão presentes e normalizadas em nossas famílias, que deveriam ser nossa fonte primária de afeto. Penso nas violências socialmente aceitáveis, espalhadas pelas ruas, salões de beleza, escritórios e restaurantes, tão banais que os agressores nem sabem que estão agredindo. A violência verbal entra pelo ouvido, mas envenena a alma. É uma violência de entranhas, tão embrenhada no modo como vivemos que torna-se plenamente aceitável — se não fosse aceitável, as pessoas não repetiriam. Ser uma violência comum não muda o fato de que machuca. E machuca de modo sistemático, dia após dia, por toda nossa vida.
Raras vezes o comentário “você engordou” virá como um elogio. Não é o fato de engordar que é ruim por si, mas o tom de crítica, alerta ou reprimenda que emana da fala. E o fato de estarmos cercadas de símbolos e discursos que glorificam o emagrecimento.
Para mim, esse tipo de comentário reverbera célula a célula, como se a palavra tivesse um poder aprisionador e sufocante. Dolorido. Não é que eu tenha escolhido viver nessa prisão, ou que alguém tenha me jogado dentro dela, mas ela foi construída à minha volta antes mesmo de eu nascer. Construída através de imagens, vozes e ideias que pertencem a uma sociedade obcecada em fazer as pessoas sentirem-se culpadas, erradas e inadequadas. Nossos corpos têm essa capacidade incrível e única de nos levar de um lugar ao outro, e talvez essa seja uma das suas funções mais bonitas. Mas se nos sentimos desconfortáveis dentro do corpo, nos habituamos a estagnar os pensamentos e nos acostumamos a essa cela. Um corpo reprimido por existir é um corpo subjugado. Por isso a sensação de prisão. Ela não é uma prisão física, mas uma prisão mental.
Corpos também são nossas fontes básicas de prazer. Dar e receber o prazer, como se a carne fosse instrumento da psique, da alma e de tudo, até de outros corpos. Se o corpo sente-se hostilizado pelo mundo, como o corpo vai dar e receber prazer? Como vai sentir prazer com os outros? A violência psicológica contra a aparência não opera apenas em oposição às mulheres, mas contra a própria humanidade. A dor parece individual, mas ela é coletiva. Escute as pessoas à sua volta.
Auto ódio e body positivity numa mesma pessoa.
Há um tempo a gente vê o movimento body positivity — vou chamar de otimismo físico — como uma onda de resposta à cultura das dietas. As ideias do otimismo físico seriam tentativas de pôr um fim na busca por um corpo idealizado ou mesmo construir uma crítica ao auto ódio que o mundo gera nas pessoas. Porque talvez seja isso que a gente guarda dentro do peito: um auto ódio que vai e volta. Não somos capazes de controlá-lo, pois ele não é nosso. Esse auto ódio é cria do mundo que nos cerca, como se fosse um verme depositado dentro da nossa cabeça. Quando falamos de aceitação (“você tem que se amar como você é”), aos poucos isso vira uma imposição besta, mas também opressiva. Tenho a sensação de que é obrigatório amar meu corpo do jeito que ele é. Pois se não o amo, não estou liberta, desconstruída e empoderada. O tal otimismo físico vem desse desconforto entre rasgar-se de auto ódio porque não estamos no padrão e sentir um desespero profundo porque não conseguimos amar nosso corpo assim como ele é. A conta nunca fecha.
O amor-próprio é uma solução capenga.
Falam-me sobre amor-próprio e fico horas escutando música e pensando o que seria o bendito. Já escrevi um texto sobre as diferenças entre amor-próprio e narcisismo, mas ainda caio no questionamento sobre se tenho realmente amor suficiente por mim mesma ou não. Aos poucos, percebo que eu sozinha não dou conta do amor que preciso para me sentir segura e confortável. Não há necessidade de ter vergonha ou pensar que sou uma pessoa fraca por não bancar essa grande questão feminina, tão atual. Parece errado sentir-me pequena porque não consigo sozinha sustentar a base da autoestima necessária para gostar do meu corpo. E então, retorno ao problema do início do texto. A naturalização da violência verbal contra os corpos pode ser a chave para entender esse desconforto. Assim como a normalização dos comentários e reações desagradáveis das famílias — que repito: deveriam ser nossa fonte primária de afeto — são elementos-chave na manutenção do verme do auto ódio do qual não conseguimos nos livrar. Muitas vezes a resposta é distanciar-se da família, mas nem sempre podemos, ou ainda: nem sempre queremos. Deixar de amar também não é exatamente uma escolha, do mesmo jeito que a ideia de não-amar pode ser mais dolorida do que aguentar o tranco das agressões.
Nosso eterno calcanhar de Aquiles.
Eu suspeito que o problema do amor-próprio e do body positivity é o mesmo. Nós os vemos como armaduras. Como se eles fossem a resposta final para o fim do sofrimento, uma blindagem contra a violência. Mas essa blindagem não tem cobertura total. Nosso calcanhar de Aquiles é o próprio mundo, a própria estrutura da sociedade. O desconforto segue porque o mundo nos afeta.
O amor-próprio não nos protege do mundo lá fora.
Como sempre, não tenho uma resposta pronta para essas questões. Mas vou continuar problematizando e pensando. Se a palavra dos outros é tão poderosa a ponto de nos machucar tanto, talvez seja com as palavras que vamos nos preservar.
🫀
Hoje foi a vez do texto sobre corpo.
Durante o primeiro trimestre de 2023, proponho escrever aqui também sobre: amor, trabalho e tecnologia.
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É isso. Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de descanso.
Vanessa Guedes.
Até hoje fico nesse movimento de me amar do jeito que sou, porém, são tantas violências, na família, sociedade e até nos profissionais da saúde. Uma vez fui para um ortopedista por conta de dores fortes na lombar por conta de protusões discais, mesmo treinando bastante, tendo hábitos saudáveis e o que eu ouvi do médico foi, você tem o peso masculino, precisa emagrecer. Aquilo me marcou bastante.
Meu texto de hoje vai conversar demais com o teu. Já tô animada!