Fadiga de informação
A superexposição online, suas violências e o livro “No enxame” de Byung-Chul Han
Apesar de estar nas redes sociais, eu faço um uso bem controlado delas. Esse controle desmoronou nas últimas semanas quando eu comecei a acompanhar a grande enchente do Rio Grande do Sul. Era de se esperar, eu estava ansiosa e preocupada com amigos, familiares e até restaurantes, livrarias e museus que fazem parte dos meus afetos no estado. Comecei a abrir os feeds de notícias sem pensar, a qualquer pausa e no meio do trabalho, perdi totalmente a concentração por vários dias. Não consegui desgrudar os olhos do instagram, por exemplo. Esse comportamento me fez encontrar um novo-eu, com características de vício. Não gostei, me senti frenética, perdida e refém da tela do celular. Uma amiga próxima me disse que ela se sente assim há anos e que provavelmente esse é um modo de vida normal para a maioria das pessoas. Sempre há algo novo para ver, para estimular. E apesar de estar acompanhando uma tragédia, eu notei que estava me viciando em novidades. Boas, ruins. Uma ânsia em estar presente de alguma forma. De saber sobre tudo o que estava acontecendo. Foi minha primeira experiência real de FOMO (fear of missing out, o medo de estar perdendo algo).
No final de semana, desliguei de tudo, anestesiada e cansada. Decidi apenas receber o que vinha naturalmente direto das pessoas pelos grupos de whatsapp e telegram, mas não tinha energia para interagir além do mínimo. Incapaz de formular um pensamento — coisa essencial para o meu trabalho de todos os dias, a escrita. Lendo o livro de ensaios No enxame: Perspectivas do digital, do hypado Byung-Chul Han (que me deu a luz para escrever um dos ensaios mais comentados aqui da newsletter, Burnout na era da positividade), tomei conhecimento da SFI. Síndrome da Fadiga de Informação, teorizada desde os anos 1990. O Byung-Chul comenta no livro que “um dos principais sintomas da SFI é o estupor das capacidades analíticas. Justamente a capacidade analítica constitui o pensamento.” Então não era estranho que eu estivesse cansada até para formular um pensamento depois da exposição intensa a tanta informação. É impossível escrever sem pensar.
A superexposição online não afeta somente a pessoa que se sente obrigada, compelida ou influenciada a postar o tempo todo. Ela também abala quem posta muito pouco, mas está lá, presente, de olho na timeline. É um bombardeamento insano de estímulos. Não é à toa que o cinema, por exemplo, precisa oscilar entre a narrativa bombasticamente apelativa, para manter a atenção das pessoas na tela, e a narrativa meia-bomba, que permite que a história possa ser acompanhada mesmo quando os expectadores estão de olho na tela do celular enquanto assistem o filme. Não é apenas nossa capacidade de atenção que está abalada pelo vício na telinha vertical dos smartphones, mas o modo como atribuímos valores às coisas. Já cansei de falar aqui sobre o quanto estamos medindo as pessoas pelas quantidades de seguidores e curtidas, atribuindo relevância a partir de números arbitrários, em uma lógica de consumo. Como se esses números fossem uma moeda paralela e as pessoas fossem commodities pelas quais pagamos com nossa atenção.
Byung-Chul diz que estamos adotando a lógica do consumo para tudo, não apenas nas redes sociais, mas também na política. Ele compara o ato de comprar uma roupa a votar. Quando vamos às compras, escolhemos, acima de tudo, peças que nos agradam, com as quais nos sentimos nós mesmos — uma identificação. Pode ser uma identificação com o que somos ou com o que desejamos ser. Ele diz que o processo de voto tem sido o mesmo, votamos nos candidatos que se parecem mais conosco. Assim, o discurso político perde a importância e o marketing eleitoral se torna o foco da campanha política.
“O fazer compras não pressupõe nenhum discurso. O consumidor compra aquilo que lhe apraz. Ele segue as suas inclinações individuais. O Curtir é o seu lema. Ele não é um cidadão. A responsabilidade pela comunidade caracteriza o cidadão. Ela falta, porém, ao consumidor. Na ágora digital, onde local de eleição e mercado, polis e economia se tornam o mesmo, eleitores se comportam como consumidores.”
- No enxame, p.73
As pesquisas de opinião de voto parecem como pesquisas de mercado. O que for percebido como negativo pelo público, vai ser endereçado na campanha eleitoral — tal qual uma campanha de marketing. Vai se ajustando a imagem do candidato conforme o que o público quer. E com isso vamos esquecendo de construir a sociedade como cidadãos, como coletivo, pois enxergamos apenas o que imediatamente nos agrada. Aos trancos e barrancos nós excluímos o pensar no outro, ficamos na nossa ilha de influencers, opiniões emitidas no calor do momento e engajamento a partir da identificação.
Não é a toa que as pessoas amam compartilhar conteúdos sobre seu signo, por exemplo. Elas se identificam com a piada, com o deboche sobre si mesmas. É um modo de se mostrar através de um filtro, assinando embaixo o conteúdo que outra pessoa criou. A lógica da identificação segue e vivemos não apenas o SFI, mas uma síndrome de super narcisismo coletivo.
Esses comportamentos ancoram nosso olhar cada vez mais fundo no abismo — a rolagem infinita da tela. À procura da próxima identificação, da próxima verdade. Por isso há um cansaço geral das telas que, ao invés de fazer-nos afastar, nos faz cada vez mais dependente delas. É aditivo. E pior do que isso: retira nossa sensibilidade.
“O excesso de informação faz com que o pensamento definhe. A faculdade analítica consiste em deixar de lado todo material perceptivo que não é essencial ao que está em questão. Ela é, em última instância, a capacidade de distinguir o essencial do não essencial. A enxurrada de informações à qual estamos hoje entregues prejudica, evidentemente, a capacidade de reduzir as coisas ao essencial.[..] A partir de um determinado ponto, a informação não é mais informativa, mas sim deformadora, e a comunicação não é mais comunicativa, mas sim cumulativa.”
- No enxame, p. 64-66
Penso que essa fadiga, causada pelo acúmulo de informação, nos faz humanos menos capazes de autonomia. Durante os dias em que fiquei vidrada nas redes sociais como nunca antes, eu acabava o dia bebendo vinho. Cada vez mais. Parecia que eu precisava de algo muito forte para me anestesiar, algo que eu não conseguia sozinha. Algo que me apagasse como um soco, pois na vigília eu não conseguia desligar.
Isso é uma violência. Do pior tipo de violência, aquela causada pela pessoa contra si mesma. Como estaremos desarmados contra nossa autoexploração? É essa a liberdade que queremos, a liberdade para consumir e distribuir curtidas?
Fica aí o questionamento.
Expediente
Sobre a gravação do aulão de escrita criativa: ainda no processo. Desculpa, gente, mas eu sou uma pessoa só. Estou em final de semestre da universidade e tenho trabalhos paralelos para dar conta também. Peço que sejam pacientes que vai sair e eu vou avisar aqui.
Satélite de recomendações
Hoje as recomendações são sonoras.
Episódio do
:Episódio do Desver:
Episódio do
:Episódio do Incêndio na Escrivaninha:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Vício na tela se retroalimenta demais quando a gente não tá bem, e pilha ainda mais o nosso mal estar e ansiedade. Gosto muito das análises do byung, mas recomendo uma do jonathan crary chamada Terra Arrasa - Alem da era digital, rumo a um mundo pós capitalista - me fez ficar muito reflexiva sobre a indissociabilidade do nosso status de consumidor e a velocidade do capital com a Internet. Ótimo texto, Vanessa!
Eu voltei pro Instagram faz pouco tempo pra divulgar o lançamento de um conto novo e tô sentindo como meu tempo tá sendo roubado, como estou irritada e com aquele pensamento "só mais um". Tento me enganar que estou vendo conteúdo de gente que gosto, mas no final isso não importa, né? Achei seu texto cirúrgico! Material importantíssimo. Inclusive, vou passar pros meus alunos