“Como é linda a liberdade
Sobre o lombo do cavalo”
Depois de terminar o Caminho de Santiago de Compostela, peguei um trem e um ônibus de volta para a cidade do Porto, em Portugal, onde tudo começou. Em um percurso de 4 horas percorri quase o mesmo trajeto que levei 13 dias para fazer a pé. Os monumentos, as pontes, as casas, as florestas e as igrejas, que conheci tão intimamente com meu corpo, tornaram-se um borrão pela janela. Os animais com quem fazia amizade a todo momento — os lagartos, as vacas, os cavalos, os besouros, os pássaros, os caẽs… — sumiram engolidos pela velocidade e a distância. Doeu. Não era saudosismo nem tristeza por ter terminado a jornada, mas o luto pela perda do ritmo. Eu voltava rápido, como um passe de mágica, para o mundo da aceleração. O mundo onde nasci.
Apenas dias antes, pelo Estranho Caminho de Santiago eu andei ininterruptamente, parando apenas para dormir e comer. O esforço físico é inimaginável depois da primeira semana. Elevou a mente a um estado de transe por cansaço, misturou o corpo à terra. Na maior parte do tempo eu já não me sentia separada do mundo, as árvores e a estrada eram extensões de mim. O indivíduo desapareceu e se misturou à paisagem, como os lagartos brotavam e sumiam na terra. Certo dia encontrei um cavalo amarrado numa árvore com uma pata traseira enrolada na corda, tentando se desprender. Medi o tamanho do risco de me aproximar e fui em frente. Contei para o cavalo, bem baixinho, que tudo ficaria bem. Fiz carinho na bochecha do bicho, perigando levar uma mordida ali, no meio da estrada deserta, no meio do campo, sabe-se lá a que distância do hospital mais próximo (talvez duas horas, duas bolhas, não sei, eu media distâncias pelos calos dos pés). Me abaixei e comecei a desenrolar a corda, puxei a pata para cima. Não tive medo de levar um coice, nem uma pisada, senti sim que meu coração batia no mesmo ritmo suave do animal. Nós dois calmos, a brisa fresca aliviando o calor do meio-dia, o sol batendo nos girassóis e a pata do cavalo estava livre.
Eu quis soltá-lo da árvore. Claro. Por mais que me sentisse sua igual, havia essa hierarquia maior do que eu e ele, a sistematização que a humanidade conferiu às espécies. Tive o ímpeto de abraçá-lo, mas me contive. Seria hipocrisia. Ninguém estava ali para filmar meu gesto, ninguém saberia que conversei com o cavalo. Ninguém saberia se eu o soltasse. Apenas os lagartos e os girassóis. Aquietei a rebeldia que vinha a galope de dentro, suspirei e voltei para a estrada. Eu e o cavalo tínhamos funções no funcionamento do mundo e soltá-lo daquele jeito talvez só trouxesse dor de cabeça para nós dois. Mas eu quis. Ah, como eu quis.
“Dormir na beira da estrada
Num sono largo e sereno
E ver que o mundo é pequeno
E que a vida não vale nada”
Das videiras europeias fiz teto para cochilos depois do almoço. E em antigas ruínas romanas, sentei para limpar meus machucados. Me acompanharam os corvos, vagueando o ar em duplas, esperando um lanche saído da mochila. Nesse tipo de ruína muitas vezes eu chorei, por nenhuma razão particular. Talvez fosse o excesso de água no corpo, a despeito do verão intenso. Peitava o sol com protetor solar e afrontava a seca com um saco de borracha de 3 litros de água para cima e para baixo nas costas. Havia fontes de águas por todos os lados e sede eu não passei. Mesmo quando não precisava encher o saco de água, me aproximava das fontes e benzia a testa. Não sou religiosa, mas gosto de ser benzida. Então a cada paragem eu fazia um batizado novo. Não havia pressa. Meu compromisso era andar.
Alguém pode imaginar que a peregrinação para Santiago é uma manifestação de fé, mas não encontrei nenhum religioso pelo caminho. É um percurso de enlutados e gente cansada do universo da pressa. Me encaixo nas duas categorias, por isso a perda do caminho foi um descolamento do corpo em uma composição maior que a carne. Pela estrada eu perdi os motivos que me levaram até ela, até que restou apenas o caminho.
O caminho entrou para dentro de mim.
“Falam muito no destino
Até nem sei se acredito
Eu fui criado solito
Mas sempre bem prevenido”
Quando choveu, formou-se um oceano entre o chão e o céu, onde eu fui peixe, tubarão e sereia. No fone de ouvido tocava Tchaikovsky, uma baleia sussurrando no ouvido as imperfeições do silêncio. Tomei água da chuva, benzendo as entranhas com as porcarias filtradas do mundo lá longe. Logo ali na frente o chão tinha uma linha fantasma. Do lado de cá, molhado, do lado de lá, seco.
Como pode a nuvem operar tamanho milagre da precisão?
Na linha fantasma havia um gato enlameado. Nos encaramos. Tirei fotos, trocamos carinhos. Quis levá-lo na mochila, mas deixei para trás. Ainda que a natureza possa ser cruel, os campos abertos seriam sempre mais lindos que qualquer outro futuro para um bichano.
“Eu vou voltar pra querência
Lugar onde fui parido
Eu vou voltar pra querência
Lugar onde fui parido”
No trem veloz, de volta à civilização, amarguei a perda das coisas que passavam pela janela. Era como se o mundo estivesse fugindo de mim, mas na verdade era eu quem corria do mundo. De dentro da velocidade, não havia nada a ser salvo, nada a ser contemplado. Apenas o imóvel banco da frente. Na imposição do tédio da viagem veloz, procurei um podcast para escutar até a estação de destino. Mas chegaria rápido demais para ouvir o podcast inteiro. Me senti muito sozinha, de uma forma diferente da solidão do Caminho de Santiago. Era uma solidão de inabilidade, de estar à mercê de uma ordem maior e sem lógica palpável. Abri meus emails e comecei a listar coisas para resolver, a vida foi se esvaindo de mim e o tempo passou a pertencer a outro universo, o mundo da eficiência. Onde me sinto o tempo todo incapaz de ser. Rapidamente concluí que não conseguiria resolver nenhuma pendência dentro do prazo ideal. A velha ironia dos tempos atuais: nunca fomos tão velozes e eficientes, mas nunca estivemos tão sem tempo para nada.
Desci do trem na cidade de Vigo, um rombo de urbanização à beira do oceano, onde um shopping gigantesco se ergue como um Godzilla estático, esculturas de alumínio brilhando sob o sol e um campo duro de cimento fazendo o caminho até as montanhas cobertas de prédios. Andei apressada por subidas e descidas, sem sombra nenhuma para me separar do torreiro cozinhando o corpo por dentro. A rodoviária parecia abandonada, grandes espaços vazios, gabinetes de refrigerante e suco de pêssego quente espalhados pelo saguão, uma escada rolante enferrujada descendo em direção ao subsolo, onde os ônibus paravam em espaços sem indicação alguma, boa sorte e encontre o ônibus para o destino, estrangeira imunda.
Encontrei o maldito no último minuto. O ônibus partiu na inquietação do trânsito de sexta-feira no litoral, cruzou a ponte do rio do Minho pela rodovia de Valença, saindo da Espanha e entrando em Portugal sem fazer reverência a porra nenhuma, deitando roda no asfalto fervente.
Cheguei na cidade do Porto, onde tudo começou, com a sensação estranha de que vou ficando mais velha e cada vez mais impaciente com a sociedade e mais sensível com a liberdade que desfruto.
Mas o que é ser livre quando não tenho poder de compartilhar a liberdade com o outro?
Notas:
Na lista abaixo tem outros posts sobre o Caminho de Santiago, com mais detalhes práticos sobre a jornada:
E os versos citados no meio do texto pertecem à milonga de Vitor Ramil, Deixando o Pago.
Satélite de recomendações
Livro
Comer animais, de Jonathan S. Foer.
Indico para todo mundo há 10 anos e já reli várias vezes.
Filme
Carroça fantasma, de 1921.
Efeitos especiais mais críveis do que o fundo verde que usamos hoje, cem anos depois. Crítica social, boteco e fantasmas. (O título original é outro e não achei versão dele em português. Mas eu traduziria assim, ok?) Nota: com certeza Stanley Kubrick copiou a cena do machado na porta do Iluminado deste filme. Eu estou fascinada.
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Até hoje não li seu último relato do caminho. Estou guardando ele nem sei direito porquê. Quando ler, te digo.
Obrigada por este texto. :*
🥺🥺🥺🥺😭😭😭