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Semana passada falei da cidade como espetáculo. Também recebi a resposta da Lalai à minha carta sobre imigração (você pode ler o belíssimo texto dela aqui). Essa semana entrei em uma reflexão profunda sobre o valor da crítica literária e, embora tenha planejado mandar outro texto hoje, precisei rascunhar um pouco sobre isso, para tirar a angústia de dentro de mim. O texto é um passeio pelo interior do Rio Grande do Sul, passando pela Suécia e indo parar no Irã de 1930.
Eu quis me esconder dentro do pote de barro, minha mãe não deixou e eu corri para trás de um fóssil de dinossauro. Estávamos visitando o museu da Mata, cidade minúscula no oeste do Rio Grande do Sul, onde minha mãe nasceu e passou os primeiros anos de vida comendo apenas inhame e restos da colheita de arroz — minha avó trabalhava para os donos de plantações e precisava despachar os filhos para trabalhar na lavoura ou em “casa de família” tão logo eles tivessem cinco ou seis anos. Quando eu mesma tinha essa idade, eu gostava de usar os chapéus que a vó fazia trançando palha de milho seca, um reflexo dourado contra o sol torrante do verão no pampa. O pote de barro onde eu quis me esconder era possivelmente uma urna funerária pré-colonial, encontrada no jardim paleobotânico da região. O jardim paleobotânico é uma coleção de árvores fossilizadas de 200 milhões de anos. Não estou exagerando, quem disse foram os geógrafos. A cerâmica é mais recente, dizem os arqueólogos, tem só alguns milênios. Na minha primeira infância, conheci muita gente que não sabia ler nem escrever, incluindo minha avó. Era uma coisa comum, assim, conviver com pessoas analfabetas, mesmo longe do interior, em Porto Alegre. Com minha avó, eu me sentia uma tradutora lendo as placas em voz alta na rua enquanto estava sendo alfabetizada. No íntimo, perguntava-me se eu estava me distanciando dos meus antepassados ao aprender a decifrar uma parte do mundo que não nos pertencia. Na minha herança cultural existia o arroz, as árvores de pedra, os potes de barro anciãos e os chapéus de palha de milho. As palavras e as letras eram instrumentos de uma outra esfera, uma outra vida.
A primeira narrativa que me fez pensar na minha avó foi Ana Terra, episódio da primeira parte do épico regional O tempo e o vento, O Continente I, de Érico Veríssimo. Eu li na época do ensino médio e estou relendo devagar esse ano.
“...na estância onde Ana vivia com os pais e dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário nem relógio [...] tinha vinte e cinco anos e ainda esperava casar. Não que sentisse muita falta de homem, mas acontecia que casando poderia ao menos ter alguma esperança de sair daquele cafundó, ir morar no Rio Pardo, em Viamão [...] Ali na estância a vida era triste e dura. Moravam num rancho de paredes de taquaraçu e barro, coberto de palha e com chão de terra batida..”
O mundo de Ana Terra é o Rio Grande do Sul de 1777, que eu consigo enxergar com extrema facilidade. Apesar da distância temporal, é um universo muito parecido com o das minhas antepassadas. As angústias de Ana poderiam muito bem ser as angústias de minha avó na década de 1930. Ler o texto de Érico Veríssimo é encontrar nuances em um período histórico de um lugar que conheço bem. Penso nisso enquanto estou em pé, em 2023, de frente para uma turma de estrangeiros, em uma universidade sueca, fazendo uma análise crítica oral de um texto de um autor persa, publicado na Índia, na década de 1930. Publicado na Índia porque foi banido no Irã sob o regime de Reza Shah. Não penso nos meus privilégios de agora, nem nas angústias do passado familiar. Mas penso na vida de Sadegh Hedayat, intelectual nascido em Teerã, que morreu em Paris. E na improbabilidade do encontro entre o passado dele e o meu presente.
O livro de Sadegh é curto, denso, poético, confuso, perturbador, surreal. Para abrir a porta da literatura persa, foi necessário muito mais do que ler as palavras de Sadegh com os olhos carregados de repertório ocidental. Me senti uma leitora muito muito pequena, uma analfabeta no mundo persa. Então eu lia The Blind Owl em inglês (em português é A Coruja Cega) relacionando o texto com Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Edgar Allan Poe, Franz Kafka. Em algum lugar invisível para mim, eu sabia que autores do mundo persa pairavam como fantasmas sobre as palavras. Mas sem conhecê-los, seria impossível evocar seus nomes para fazer conexões. É nesse tipo de preocupação que podemos notar a diferença entre ler um livro e fazer uma análise crítica de um livro.
Ler Sadegh é se soltar em uma imensidão de um mundo novo. Assim como é perfeitamente possível ler a história de um mundo de fantasia com regras próprias e vocabulário específico, também dá para ler narrativas sobre lugares muito distantes geograficamente. Tão distantes que poderiam ser fantasia como a Terra Média de Tolkien. Mas não são. Para ler Sadegh, tudo que preciso é seu livro traduzido em uma língua que conheço. Para criticar Sadegh, preciso de muitas outras coisas.
Me encontrei com outros dois colegas, ambos suecos, que também estão analisando o livro de Sadegh, para discutir a obra antes de escrevermos nossas críticas. É o melhor livro que já li na vida, mas me sinto incapaz de transmutar esse deslumbramento em um ensaio acadêmico, desabafou um deles. Estávamos os três frustrados por não termos conhecimento suficiente sobre o Irã e sua história recente para podermos localizar o livro com propriedade. Claro que estamos lendo artigos e capítulos de livros de história para poder entender, mas há nuances que nos escapam. É difícil situar a complexidade de um texto escrito em um universo tão distante do nosso, geográfica e historicamente. Conversamos com a professora e ela nos acalmou. Explicou que podemos usar nosso repertório, independente de qual for, para analisar o livro. A crítica parte do ponto de vista do crítico: as ideias não estarão “erradas” se estiverem bem fundamentadas e em uma linha de raciocínio que dê sentido à interpretação. Inclusive, a revisão por pares é essencial para validar uma interpretação bem consolidada no universo acadêmico, por exemplo.
Questão de interpretação
Quando estava sendo alfabetizada, eu lia as palavras pelas ruas e contava para minha avó o que estava escrito. Assim, eu interpretava uma nuance do mundo para ela. Quando eu escrevo um texto aqui, estou interpretando minha visão de mundo para você, que está me lendo. A minha leitura sobre o mundo tem tudo a ver com meu repertório, todas as coisas que passaram por mim e os símbolos que aprendi a identificar com a experiência de vida, leituras e contato com a interpretação de outras pessoas também. Veja como é complexo o conceito da interpretação; ela mistura emoção, cultura, memória, estereótipos, experiência e até mesmo preconceitos.
Platão parece ter sido um dos primeiros a dizer que o valor da arte está na interpretação que damos a uma obra. Por isso um livro ou uma pintura podem provocar reações muito distintas entre as pessoas. A interpretação do livro de Sadegh é um exemplo vivo dessa distinção. A começar pelo título: Coruja Cega. O livro se chama assim porque o narrador está fazendo uma confissão para uma sombra na parede de casa, uma sombra que se assemelha ao contorno de uma coruja. Ao longo da vida, aprendi que a figura da coruja é um símbolo de conhecimento, sabedoria e inteligência. As primeiras páginas do livro se debruçam sobre a ideia de que escrever é contemplar nossa sombra, um caminho para conhecer a si mesmo. Bonito, não é? Mas para a cultura persa, assim como a maioria dos povos do oriente médio, a coruja é um símbolo pessimista, de azar. A personificação do mau agouro. Isso abre a interpretação da obra para duas chaves distintas, mas talvez complementares. Autoconhecimento pode ser o caminho também para encontrar uma parte maléfica de si mesmo. No início da vida adulta, o autor estudou na França e na Índia, sabemos que leu e analisou escritores do mundo todo. Chegou a traduzir Sartre e Tchekhov para o persa. Ele poderia estar jogando com os significados. Seria o símbolo da coruja uma representação da dualidade entre o conhecimento e o mal? Bom, está aberto à interpretação.
Making of de uma crítica
Não é à toa que parto esse texto da imagem da minha avó e das cerâmicas pré-coloniais do museu da Mata. Se a interpretação vem do repertório pessoal, minha origem, identidade e experiências atravessam o jeito que eu olho para o mundo. Ao mesmo tempo, preciso de muita generosidade para entender que a arte de Sadegh guarda um arcabouço de elementos distantes de mim para formar sua obra.
Gosto da palavra obra, inclusive, porque traz esse senso de construção. Uma obra é formada de matéria-prima, de desejo, de necessidade. Os tijolos da construção são invisíveis para quem anda dentro do prédio, mas eles estão lá. Para criticar a obra, não precisamos conhecer todos os detalhes da construção, mas reconhecer a presença dos tijolos é essencial, mesmo que seja impossível saber sua cor e textura com detalhes.
Os geógrafos, geólogos e arqueólogos fazem um trabalho muito semelhante de interpretação. Olham para coisas muito antigas e investigam seus detalhes, sua origem. Não é bonito o trabalho de quem olha tão fundo para o sentido das coisas?
Bem, vou deixar esse texto por aqui porque preciso entregar um ensaio acadêmico sobre um livro persa que me deixou insone várias noites.
“O espectador poderia abordar a arte como faria com uma paisagem. A paisagem não exige nada do espectador, sua compreensão, seus significados atribuídos, suas ansiedades e simpatias; exige, sim, sua ausência, pede que ele não adicione nada a ela. Contemplação, a rigor, implica o esquecimento de si mesmo pelo expectador: um objeto digno de contemplação é um que, em efeito, elimina o sujeito que a percebe.”
Do livro Styles of radical will, de Susan Sontag. (nesse trecho, tradução minha). Encontrei uma versão em português do livro aqui.
Satélite de recomendações
No caminho dos fósseis: Pensando em fazer um turismo pelo sul do Brasil diferente do batido passeio Gramado e Canela? Eu sugiro fortemente percorrer a Rota Paleontológica. São 4 cidades e Mata está no roteiro. Dá para fazer de bicicleta, inclusive. Aqui tem informações.
Como escrever crítica literária: Minha grande amiga da vida, a Ana Rüsche, tem um texto sobre como escrever uma crítica literária em seu blog. Recomendo fortemente para quem quer aprender como escrever bem uma crítica. Leia “Três ideias para começar a redigir uma crítica literária” aqui.
O problema da interpretação: um dos meus livros de ensaios favoritos de todos os tempos é o famoso Contra a interpretação, da Susan Sontag. Você pode comprar aqui.
Textos sobre escrita
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Para fazer uma crítica
Que bonito, gente! muito bom ler vc.
Apenas: obrigada