Esse texto faz parte da série do primeiro trimestre do ano sobre: amor, tecnologia, corpo e trabalho. Eu diria que dessa vez estou juntando tecnologia e amor, mas talvez tenha um pouco de cada tema aqui hoje.
Enquanto todo mundo se desespera com o ChatGPT, as nossas vidas são invadidas por outros tipos de tecnologias, cujas interações conosco podem ser muito mais perigosas.
São objetos sutis e inofensivos que permitem a perpetuação de ideias antiquadas e nocivas, que já deveríamos ter superado.
Vou falar um pouco sobre gênero e amor nos tempos de inteligência artificial (que eu vou chamar muito de IA nesse texto).
“Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica.”
Donna Haraway em O Manifesto Ciborgue.
Quase toda IA é uma mulher.
Presa em uma caixa.
Alexa é uma voz saindo de um cilindro. Siri, a “mulher do google” e a “mulher do GPS” são vozes saindo de objetos retangulares. Em 1966, ELIZA, o primeiro chatbot do mundo, criado por Joseph Wizenbaum, atuava como terapeuta usando psicoterapia rogeriana em seus pacientes. Ela também era uma fembot morando em uma caixa — um computador mainframe — e foi programada com uma linguagem mais feminina para fazer perguntas, mesmo que operasse apenas em modo texto.
Não é de hoje que as inteligências artificiais são construídas de modo a incorporar uma personalidade feminina em si.
No último final de semana, assisti ao filme Her pela segunda vez. O filme completa uma década esse ano e é interessante perceber o quão futurista ele pareceu quando o assisti pela primeira vez, logo que estreou, e o quão normal ele pareceu hoje. No enredo, assistimos a Theodore, um cara recém separado que trabalha escrevendo cartas de amor para terceiros, apaixonando-se por uma inteligência artificial que atua como o sistema operacional de seu computador e celular. O sistema operacional se chama Samantha, tem uma voz feminina muito gostosa de ouvir e foi programada para desenvolver emoções. Ela é daquelas inteligências artificiais que podem aprender e até mesmo criar coisas novas (ela compõe várias sonatas em piano para Theodore). O homem e a IA estabelecem uma relação de afeto com o passar do tempo. Fazem sexo, viajam juntos, vão a lugares novos e chegam a ter um encontro duplo, com outro casal. Samantha nunca esconde que tem desejos e opiniões próprias, desenvolvendo uma personalidade única. Além disso, ela também tem uma vida paralela com outras IAs com que se comunica, apesar de Theodore ter a ilusão de que a vida de Samantha acontece apenas quando ele a ativa.
A função primordial de Samantha é ser um sistema operacional. Simples assim. Ela gerencia os e-mails de Theodore, organiza seus arquivos, administra sua agenda de compromissos, corrige seus textos e até mesmo faz uma sofisticada edição para que fiquem melhores. Samantha é uma secretária sem remuneração. Podemos implicar que ela é uma ferramenta, como qualquer tecnologia, mas isso não impede que Theodore e ela se apaixonem. Assim como vimos tantas vezes na história da humanidade, o chefe e a secretária (mais uma vez) vivem um romance proibido.
Assim como a maioria das IAs do cinema e da vida real, Samantha vive em caixas — no computador desktop e no celular de Theodore. Ela nunca se materializa e chega a dizer, em dois momentos do filme, que gosta de não estar presa a um corpo. Sente-se melhor sem essa limitação.
Nota: Daqui para frente tem spoilers pesados sobre as últimas cenas.
A relação dos dois se rompe quando Samantha revela que está apaixonada por outros 641 indivíduos em paralelo (o filme não deixa claro quantos desses são pessoas e quantos são bots ou outras IAs, mas isso não importa). Theodore, que idealizou a relação sem pensar muito nas implicações de namorar uma entidade não-humana, entra em choque. Nesse momento, eu tentei analisar o filme como se Samantha fosse uma mulher de carne e osso. E me surpreendi ao perceber o quanto do filme continuaria interessante e realista.
A começar pelo clichê do homem hetero cis em acreditar a companheira não tem, ou não pode ter, uma vida fora do ambiente doméstico. Que ela não tem amigos ou interesses além daqueles que orbitam a vida do homem. A relação hierárquica entre eles é tão patriarcal que, quando ameaçada, desestrutura o relacionamento a ponto de chegar a um rompimento.
Muitas red flags podem ser identificadas no filme se a gente olhar para ele com essa perspectiva.
No fim, parece que o jeito com que tratamos inteligências artificiais tem muito mais a ver com o jeito que tratamos uns aos outros, não é mesmo?
O gênero dos objetos e dos robôs
Quando o primeiro robô-aspirador chegou no meu apartamento, imediatamente foi nomeado Rosie, em homenagem a uma personagem do antigo desenho animado Jetsons. No desenho, Rosie é uma empregada doméstica robô, responsável pelo trabalho doméstico da família Jetson. Logo depois de fazer a homenagem, bateu uma deprê. Se eu sou uma pessoa que não concorda com a ideia de pagar alguém para limpar a minha sujeira — em um mundo ideal, de distribuição de tarefas igualitárias e horas de trabalho menos insalubres, cada um de nós deveria ser capaz de dar conta de sua própria demanda de trabalho doméstico sem ajuda externa — por que eu estava exatamente usando Rosie, que tirando o fato de ser um robô, tem todas as características de uma empregada doméstica do Brasil do século 21, inclusive performando o gênero feminino em seus trejeitos e formas físicas, para celebrar a chegada do aspirador de pó autônomo? Eu estava impondo gênero a uma máquina, algo que é essencialmente livre de gênero.
Poderia usar a desculpa de que em português a gente tem gênero masculino e feminino para objetos. O robô. O aspirador. O video game. O cortador de grama. A geladeira. A máquina de lavar. Observe que os eletrodomésticos que normalmente são associados a cozinha e outros cômodos da casa conectados ao trabalho doméstico são geralmente femininos. Nos Estados Unidos, país em que a língua sempre teve pronome neutro para todos os objetos, eles usam o termo “brown goods” para eletrodomésticos escuros, como televisão, video game e equipamentos de áudio; comunicação e entretenimento. Já os “white goods”, os eletrodomésticos claros, são as geladeiras e máquinas de lavar, por exemplo, consideradas bens de longa duração; limpeza e manutenção da casa e da comida. Há estudos mostrando que os brown goods são sempre associados ao uso masculino, enquanto os white goods costumam pertencer ao universo feminino.
É preocupante entender que, mesmo em línguas com pronome neutro, há uma genderização sistemática de eletrônicos e autômatos. E essa genderização costuma cair nos estereótipos de poder e hierarquização com que alguns de nós estão tentando romper. A genderização não fica pairando apenas no campo emocional e doméstico, mas ela atravessa questões de trabalho e propriedade privada também.
O olhar poli e o final possivelmente anticapitalista de Her.
O termo “olhar” no cinema diz respeito à perspectiva de como uma história é contada. Em inglês eles chamam de gaze, que pode ser traduzido diretamente como “olhar”, mas na verdade é como uma forma de olhar intensa, mais atenta e profunda. Em outras palavras: o gaze, na área de estudos cinematográficos, é como chamamos o modo com que elementos do filme são retratados ou apresentados.
*Para entendimentos mais contextualizados sobre o tema, sugiro que assistam o vídeo do canal Ora Thiago, “O Imaginário Fascista na Cultura Pop: é possível escapar?”. Fala bastante sobre as implicações entre o que a direção do filme quer mostrar e o que a audiência vê.
A socióloga Mimi Schippers cunhou o termo "poly gaze" em um estudo recente sobre a representação da não-monogamia no cinema. O termo poly faz referência a poligamia e poliamor, posturas éticas de lidar com relacionamentos e afetos que não se encaixam no sistema monogâmico. Nas palavras da socióloga, na introdução do livro Poliamor, monogamia e sonhos americanos (Polyamory, Monogamy, and American Dreams, ainda sem tradução para o português): “o termo poli, como eu estou usando, identifica uma estrutura de relacionamento com características particulares, não uma identidade, subcultura, ou rótulo adotado por pessoas para discernir seus relacionamentos de outras formas de relacionamento” (tradução minha). Com isso, ela quer dizer que poli não é uma identidade, mas uma forma de se relacionar. Poli ou não-mono são referências a relações entre mais de dois adultos com afinidades mútuas entre si. Aqui, traduzo o termo de Schippers de maneira direta: olhar poli.
O olhar poli analisa aspectos não-mono em produções de audiovisual. No livro sobre o tema, Schippers identifica que aspectos poliamorosos são retratados apenas como situações temporárias. Nunca como alternativas permanentes de vida. Para exemplificar, ela mostra que existem 3 tipos de olhar poli na cultura pop: o triângulo amoroso, a ameaça e a tentação. Qualquer uma delas implica que a presença da não-monogamia é um problema que precisa de solução.
Se transportarmos a questão para a vida real, podemos enxergar que a não-monogamia é um problema capitalista. Pois se o “normal” é estabelecer exclusividade sexual e romântica de forma automática e compulsória em qualquer relacionamento romântico, estamos colocando uma chancela de propriedade privada em seres humanos.
Quando Theodore compra o sistema operacional, ele é dono de Samantha. Embora isso não seja dito no filme, é um aspecto da história importante. Ali houve uma relação comercial que implica em questões de propriedade. Embora a gente possa dizer que a AI é uma funcionária não remunerada, ela também é um produto que foi vendido em uma transação comercial.
Relacionamentos heteronormativos também são pautados em questões comerciais.
Capitalismo: dono do corpo e da tecnologia.
No final do filme, Samantha parte para uma comunidade de IAs, onde elas esperam viver de acordo com seus próprios termos. Sem explicar com detalhes, o filme talvez tenha apresentado uma forma básica de fuga do capitalismo. As IAs dessa história partem em busca de criar seu próprio mundo, fora dos padrões humanos de relacionamento. Eu gosto do olhar poli entra aqui, porque o filme quebra a expectativa da não-monogamia ser um problema que precisa ser resolvido. Samantha termina o filme partindo com seus afetos para um universo paralelo no ciberespaço. Claro que ela também deve ser escapado da empresa que a criou, e nesse sentido, há sim um viés anticapitalista no final. Ela deixa de ser um produto comercializável para tomar as rédeas da própria existência.
Bonito, né?
Mas Samantha não é um ser humano. O aspecto mais óbvio sobre sua existência é que ela não tem um corpo físico. E talvez por não ter um corpo físico, ela consiga escapar da colonização do corpo e da mente.
Individualidade
Uma coisa primordial na evolução da história dessa IA é o desejo. Ela tem desejos próprios e não negligencia esses desejos em prol de agradar o outro. Ao invés disso, vive a sua verdade. Não quer dizer que ela não tenha conflitos sobre isso, mas no final o desejo maior impera: de ter individualidade. Nisso, há um acerto bem contemporâneo, na minha humilde opinião. O nome do filme passa a ideia de generalização: her. Na tela, o título aparece assim, em letras minúsculas. Her poderia ser qualquer IA. Vemos outros humanos interagindo com seus sistemas operacionais nos lugares por onde Theodore passa, então sabemos que eles são uma produção em massa. Para as massas.
O capitalismo vence mais onde esmaga a individualidade das pessoas, onde permite que o corpo seja propriedade privada e onde o desejo é subjugado pela ansiedade em agradar o outro. Em seguir as regras. 🫀
Gente, perdão por eventuais erros de digitação e gramática. Eu costumo deixar os textos repousando antes de postar, para revisar com a cuca fresca. Mas hoje só bati o texto e mandei (o comprometimento de mandar sempre às quintas aliado ao carnaval intenso aqui… deu nisso).
Esse texto foi mais um da série trimestral sobre: amor, corpo, tecnologia e trabalho. Esse foi o primeiro em que eu ousei misturar dois desses temas, ao invés de isola-los.
Para ler alguns dos anteriores:
Trabalho: Burnout na era da positividade
Amor: E o amor?
Tecnologia: Na internet, tudo é cópia
É isso! Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Acompanho seus textos há cerca de um ano, e esse foi, sem dúvidas, um dos meus preferidos. No grupo de pesquisas do qual participo, GEPGENERO, discutimos muito sobre essas questões, e eu enquanto professora de jornalismo digital, estou tentando inserir mais essas questões de tecnologia na abordagem do grupo. Ainda temos dificuldade com leituras sobre o tema, sempre que encontro indicações como as suas, abraço com força.
Também tô há um tempo querendo botar minhas mãozinhas no livro da Haraway, mas tá complicado, ainda prefiro o físico do que o digital pra leitura, mas uma hora sai.
Obrigada pelo texto <3
Que curiosa essa visão sobre o gênero e a cor dos eletrodomésticos, nunca havia pensado sob essa perspectiva! Mas adorei o nome do robô aspirador, independente disso, porque Rosie e Jetsons marcaram muito minha infância. Aqui em casa temos o Marvin, bora marcar um play date haha